parte 9

 

DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS

35. Agora, pois, quando se lhes apareçam de noite e queiram contar-lhes o futuro ou lhes digam: 'Somos os anjos', ignorem-nos porque estão mentindo. Se louvam sua prática da vida ascética ou os chamam santos, não os ouçam nem tenham nada que ver com eles. Façam antes o sinal da cruz sobre si mesmos, sobre sua morada e oração, e vê-los-ão desaparecer. São covardes e têm terror mortal do sinal da cruz de Nosso Senhor, desde que na cruz o Senhor os despojou e escarmentou-os (Sl 2,15). Se insistem, porém, com maior cinismo, bailando em torno e mudando de aparência, não os temam nem se acovardem nem lhes prestem atenção como se fossem bons; é totalmente possível distinguir entre o bem e o mal com a garantia de Deus. Uma visão dos santos não é turbulenta, 'pois não contenderá nem gritará' e ninguém ouvirá sua voz nas ruas (Mt 12,19; cf Is 42,2). Essa visão chega tão tranquila e suave, que logo haveá alegria, gozo e valor na alma. Com eles está nosso Senhor, que é nossa alegria, e o poder de Deus Pai. E os pensamentos da alma permanecem desembaraçados e sem agitação, de modo que em sua própria brilhante transparência é possível contemplar a aparição. Um anelo das coisas divinas e da vida futura se apossa da alma, e seu desejo é unir-se totalmente a eles e com eles poder partir. Se alguns, porém, por ser humanos, têm medo ante a visão dos bons, então os que aparecem expulsam o temor pelo amor, como o fez Gabriel com Zacarias (Lc 1,13), e o anjo que apareceu às mulheres no santo sepulcro (Mt 28,5) e o anjo que apareceu aos pastores. 'Não temam' (Lc 2,10). Temor, nestes casos, não é covardia da alma, antes, porém, consciência da presença de seres superiores. Tal é, pois, a visão dos santos.

36. Por outro lado, o ataque e a aparição dos maus estão cheios de confusão, acompanhada de ruídos, bramidos e alaridos; bem poderia ser o tumulto produzido por homens grosseiros ou salteadores. Isto no começo ocasiona terror na alma, distúrbios e confusão de pensamentos, desalento, ódio da vida ascética, tédio, tristeza, lembrança dos parentes, medo da morte; e logo vem o desejo do mal, o desprezo da virtude e completa mudança do caráter. Por isso, se vocês têm uma visão e sentem medo, mas se o medo se afasta logo e em seu lugar lhes vem inefável alegria e contentamento, recuperação da força e da calma do pensamento e tudo o mais que mencionei, e valentia de coração e amor de Deus, então alegrem-se e orem; seu gozo e a tranquilidade da alma dão prova da santidade Daquele que está presente. Assim, Abraão, vendo o Senhor, alegrou-se (Jo 8,56), e João, ouvindo a voz de Maria, a Mãe de Deus (37), saltou de alegria (Lc 1,41). Se, porém, visões os surpreedem e confundem e há abertamente tumulto e aparições terrenas e ameaças de morte e tudo o mais que mencionei, saibam então que a visita é do mau.

37. Tenham, também este outro sinal: se a alma prossegue com medo, o inimigo está presente. Os demônios não tiram o medo que produzem, como o fez o grande arcanjo Gabriel com Maria e Zacarias, e o que apareceu às mulheres no sepulcro. Os demônios, ao contrário, quando vêem que os homens têm medo, aumentam suas fantasmagorias para aterrorizá-los ainda mais, depois descem e os enganam dizendo-lhes: 'Prostrem-se e adorem-nos' (cf Mt 4,9). Assim enganaram aos gregos, pois entre eles os havia, tomados falsamente por deuses. Nosso Senhor, porém, não permitiu que fôssemos enganados pelo demônio, quando uma vez repeliu-o quando intentava utilizar suas alucinações com Ele: 'Aparta-se, Satanás, porque está escrito: Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele servirás' (Mt 4,10). Por isso, desprezemos sempre mais o autor do mal, pois o que nosso Senhor disse foi por nós: quando os demônios ouvem tais palavras, são expulsos pelo Senhor que com essa palavras os repreendeu.

38. Não devemos jactar-nos de expulsar os demônios nem vangloriar-nos por curas realizadas; não devemos honrar só ao que expulsa os demônios e desprezar o que não o faz. Que cada um observe atentamente a vida ascética do outro, e então imite-a e emule, ou a corrija; quanto a fazer milagres, não nos compete. Isto está reservado ao Salvador, que, por outro lado, disse a seus discípulos: 'Alegrem-se, não porque os demônios se lhes submetem, mas porque têm seus nomes escritos no céu' (Lc 10,20). E o fato de estarem nossos nomes escritos no céu é testemunho para nossa vida de virtude, mas quanto a expulsar demônios, é dom do Salvador. Por isso, aos que se gloriavam não de sua virtude mas de seus milagres e diziam: 'Senhor, não expulsamos demônios em teu nome e não operamos milagres, também em teu nome?' (Mt 7,22). Ele respondeu: 'Em verdade lhes digo que não os conheço' (Mt 7,23), pois o Senhor não conhece o caminho dos ímpios (cf Sl 1,6). Em resumo, deve-se orar, como já disse, pelo dom do discernimento dos espíritos, a fim de que, como está escrito, não creamos a cada espírito (cf 1 Jo 4,1).

 

ANTÃO NARRA SUAS EXPERIÊNCIAS COM OS DEMÔNIOS

39. Em realidade, queria agora deter-me e não dizer nada mais que viesse de mim mesmo, já que basta o que foi dito. Mas para que vocês não pensem que simplesmente digo estas coisas por falar, mas para que se convençam de que o faço por verdadeira experiência, por isso quero contar-lhes o que vi quanto às práticas dos demônios. Talvez me chamem de tonto, mas o Senhor que está ouvindo o sabe que minha consciência é limpa e que não é por mim mesmo mas para vocês e para alentá-los que digo tudo isto.

Quantas vezes me chamaram bendito, enquanto eu os maldizia em nome do Senhor! Quantas vezes faziam predições acerca da água do Rio! E eu lhes dizia: 'Que têm vocês a ver com isto? 'Uma vez chegaram com ameaças e me rodearam como soldados armados até os dentes. Noutra ocasião encheram a casa com cavalos e bestas e répteis, mas eu cantei o salmo: 'Uns confiam nos carros, outros em sua cavalaria, mas nós confiamos no nome do Senhor nosso Deus' (Sl 19,8), e a esta oração foram rechaçados pelo Senhor. Outra vez, no escuro, chegarm com uma luz fátua dizendo: 'Vimos trazer-te luz, Antão'. Fechei, porém os olhos, orei, e de um golpe apagou-se a luz dos ímpios. Poucos meses depois chegaram cantando salmos e citando as Escrituras. Mas 'eu fui como um surdo que não ouve' (Sl 37,14). Uma vez sacudiram a cela de um lado a outro, mas eu rezei, permanecendo inalterável em minha mente. Voltaram então e fizeram um ruído contínuo, dando golpes, sibilando e fazendo cabriolas. Pus-me então a orar e cantar salmos, e então começaram a gritar e lamentar-se como se estivessem extenuados, e eu louvei ao Senhor que reduziu a nada seu descarmento e insensatez e lhes deu uma lição.

40. Uma vez apareceu-me em visão um demônio realmente enorme, que teve a desfaçatez de dizer: 'Sou o Poder de Deus' e: 'Sou a Providência. Que favor desejas que te faça?' Então soprei-lhe meu bafo (38), invocando o nome de Cristo e fiz empenho de golpeá-lo. Parece que tive êxito, porque logo, grande como era, desapareceu, e todos seus companheiros com ele, ao nome de Cristo. Outra vez, estava eu jejuando e chegou-se a mim o velhaco trazendo pães ilusórios. Pôs-se a dar-me conselhos: 'Come e deixa-te de privações. Também tu és homem e estás a ponto de adoecer.' Mas eu, percebendo seu embuste, levantei-me para orar e ele não aguentou: desapareceu como fumaça através da porta.

Quantas vezes me mostrou no deserto uma visão de ouro que eu podia pegar e levar! Opus-me cantando um salmo e se dissolveu. Bateu-me muitas vezes e eu dizia: 'Nada poderá separar-me do amor de Cristo' (cf Rm 8, 35), e eles então se golpeavam uns aos outros. Não fui eu, porém, quem deteve e paralisou seus esforços, mas o Senhor que disse: 'Vi Satanás caindo do céu como um relâmpago' (Lc 10,18).

Filhinhos meus, lembrem-se do que disse o Apóstolo: 'Apliquei-me isto a mim mesmo' (1 Cor 4,6), e aprenderão a não descoroçoar-se em sua vida ascética e a não temer as ilusões do demônio e de seus companheiros.

41. Já que me fiz louco entrando em todas estas coisas, escutem também o que segue, para que possa servir-lhes para sua segurança; creiam-me, não minto. Uma vez ouvi um golpe na porta de minha cela, saí e vi uma figura enormemente alta. Quando lhe perguntei: 'Quem és?', respondeu-me: 'Sou Satanás'. 'Que estás fazendo aqui?'Ele respondeu: 'Que falta encontram em mim os monges e os demais cristãos, sem razão alguma? Por que me expulsam a cada momento?'- 'Bem, por que os molestas?, disse-lhe.

Ele contestou: 'Não sou eu que os molesto, mas seus embaraços têm origem neles mesmos, pois eu me enfraqueci. Não leste por acaso: O inimigo foi desarmado, arrasaste suas cidades (Sl 9,7)? Agora não tenho nem lugar nem armas nem cidade. Em toda parte há cristãos e até o deserto está cheio de monges. Que se dediquem ao que lhes é próprio e não me maldigam sem causa.

Maravilhei-me então ante a graça do Senhor e lhe disse: 'Ainda que sejas sempre mentiroso e nunca fales a verdade, no entanto desta vez a disseste, por mais que te desagrade fazê-lo. Vês, Cristo, com sua vinda te fez impotente, derrubou-te e te despojou'. Ele, ouvindo o nome do Salvador e incapaz de suportar o calor que isto lhe causava, desvaneceu-se.

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