Parte 8

 

IMPOTÊNCIA DOS DEMÔNIOS

 

28. Bem, até agora só falei deste tema de passagem. Mas agora não devo deixar de tratá-lo com maiores detalhes; recordar-lhes isto só pode redundar em maior segurança.

Desde que o Senhor habitou conosco, o inimigo caiu e declinaram seus poderes. Por isso não pode nada; no entanto, ainda que caído, não pode ficar quieto, mas como tirano que não pode fazer outra coisa, vai-se com ameaças, sejam elas embora puras palavras. Cada qual lembre-se disto e poderá desprezar os demônios. Se estivessem confinados a corpos como os nossos, deveriam então dizer: 'Aos que se escondem, não os vamos encontrar; mas se os encontramos, então vamos daná-los'. E neste caso poderíamos escapar deles escondendo-nos e trancando as portas. Não é este, porém, o caso, e podem entrar apesar das portas trancadas. Vemos que estão presentes em todas as parte no ar, eles e seu chefe, o demônio, e sabemos que sua vontade é má e que estão inclinados a danar, e que, como diz o Salvador, 'o demônio foi homicida desde o princípio' (Jo 8,44); então, se apesar de tudo vivemos, e vivemos nossas vidas desafiando-o, é claro que não tem nenhum poder. Como vêem, o lugar não lhes impede a conspiração; tampouco nos vêem amáveis com eles como para que nos perdoem, nem tampouco são amantes do bem para mudar seus caminhos. Não, ao contrário, são maus e nada há que desejem mais ansiosamente do que fazer dano aos amantes da virtude e aos adoradores de Deus. Pela simples razão de serem impotentes para fazer algo, nada fazem senão ameaçar. Se pudessem, estejam vocês seguros de que não esperariam, mas, antes, realizariam seus mais fortes desejos: o mal, e isso contra nós. Notem, por exemplo, como agora estamos reunidos aqui falando contra eles, e ademais eles sabem que na medida em que fazemos progressos, eles se debilitam. Em verdade, se estivesse em seu poder, não deixariam vivo nenhum cristão, porque o serviço de Deus é abominação para o pecador (Sir 1,25). E posto que não podem nada, fazem dano a si mesmos, já que não podem cumprir suas ameaças.

Ademais, para acabar com o medo a eles, dever-se-ia também levar em conta que, se tivessem algum poder, não viriam em manadas, nem recorreriam a aparições, nem usariam o artifício de transformar-se. Bastaria que viesse apenas um e fizesse o que fosse capaz de fazer, ou de acordo com sua inclinação. O mais importante de tudo é que o detentor do poder não se esforça em matar com fantasmas nem trata de aterrorizar com hordas, mas, sem mais histórias, usa de seu poder como quer. Atualmente, porém, os demônios, impotentes como são, fazem piruetas como se estivessem sobre um cenário, mudando suas formas em espantalhos infantis, com manadas ilusórias e contorções, tornando-se assim mais desprezível sua carência de vigor. Estejamos seguros: o anjo verdadeiro, enviado pelo Senhor contra os assírios, não teve necessidade de grande número, nem de ilusões visíveis, nem de sopros retumbantes, nem de ressoar de guizos; não, ele exerceu tranquilamente seu poder, e de uma vez matou cento e oitenta e cinco mil deles (cf 2 Rs 19,35). Mas os demônios, impotentes criaturas como são, tratam de aterrorizar, e isto com meros fantasmas!

29. Se alguém, ao examinar a história de Jó dissesse: 'Por que, então, continuou o demônio agindo contra ele? Despojou-o de suas posses, matou seus filhos e o feriu com graves úlceras' (cf Jó, 1,13ss; 2,7), que essa pessoa se aperceba de que não se trata de que o demônio tivesse poder para fazer isso, mas Deus é que lhe entregou Jó para que o tentasse (cf Jó 1,12). Fica suposto que não tinha poder para fazê-lo; pediu esse poder e só depois de havê-lo recebido agiu. Aqui temos outra razão para desprezar o inimigo, pois ainda que tal fosse o seu desejo, não foi capaz de vencer o homem justo. Se o poder houvesse sido dele, não haveria necessidade de pedi-lo, e o fato de o pedir não uma, mas duas vezes, mostra sua fraqueza e incapacidade. Não é de estranhar que não tivesse poder contra Jó, quando lhe foi impossível destruir nem mesmo seus animais, a não ser que Deus lhe desse permissão. Mas não tem poder nem sequer contra porcos, como está escrito no Evangelho: (Mt 8,31). Mas se não têm poder nem sequer sobre animais, muito menos o têm sobre os homens feitos à imagem de Deus.

30. Por isso se deve temer a Deus só e desprezar esses seres, sem lhes ter medo, absolutamente. E quanto mais se dedicam a tais coisas, tanto mais dediquemo-nos à vida ascética para contra-atacá-los, pois uma vida reta e a fé em Deus são grande arma contra eles. Temem aos ascetas por seu jejum, suas vigílias, orações, mansidão, tranquilidade, desprezo do dinheiro, falta de presunção, humildade, amor aos pobres, esmolas, ausência de ira, e, acima de tudo, sua lealdade para com Cristo. Esta é a razão pela qual tudo fazem para que ninguém os espezinhe. Conhecem a graça dada pelo Salvador aos crentes quando diz: 'Olhem: dei-lhes o poder de calcar aos pés serpentes e escorpiões e todo o poder do inimigo' (Lc 10,19).

FALSAS PREDIÇÕES DO FUTURO

31. Também, se pretendem predizer o futuro, não lhes façam caso. Às vezes, por exemplo, nos comunicam dias antes a visita de irmãos, e efetivamente chegam. Mas não é por se preocuparem com seus ouvintes que fazem isto, mas para induzi-los a colocar sua confiança neles, e assim, tendo-os bem nas mãos, poderem destruí-los. Não os escutemos, mas deitemo-los fora, pois não precisamos deles. Que prodígio haverá em que eles, tendo corpos mais sutis que os homens (34), vendo que alguém se põe a caminho, se adiantem e anunciem sua chegada? Uma pessoa a cavalo poderia também adiantar-se de outro a pé e dar a mesma informação. Assim, pois, tampouco nisto não há de que admirar-nos deles. Não têm nenhum conhecimento prévio do que ainda não aconteceu (35), mas só Deus conhece todas as coisas antes que existam (cf Dn 13,42). Neste ponto são como ladrões que correm adiante e anunciam o que viram. Neste momento mesmo, a quantos já terão anunciado o que estamos fazendo, como estamos aqui discutindo sobre eles, antes que nenhum de nós possa levantar-se e informar o mesmo! Mas até um menino veloz para correr faria o mesmo, adiantando-se a uma pessoa mais lenta. Vou ilustrar com um exemplo o que quero dizer. Se alguém quiser por-se em viagem de Tebaida ou de qualquer outro lugar, antes de que efetivamente parta não sabem se vai sair ou não; mas quando o vêem caminhar, adiantam-se e anunciam de antemão sua chegada. E assim sucede que depois de alguns dias chega. Às vezes, porém, o viajante volta e a informação é falsa.

32. Também às vezes falam sandices a respeito da água do Rio (36). Por exemplo, vendo as grossas chuvas nas regiões da Etiópia e sabendo que as enchentes do Rio tem ali sua origem, adiantam-se e o anunciam antes que as águas alcancem o Egito. Também os homens poderiam fazê-lo, se pudessem correr com a rapidez deles. E como a sentinela de Davi (2 Sm 18,24), subindo a uma altura, conseguiu avistar o que chegava antes do que os que estavam em baixo, e correndo informou logo, não o que ainda não havia passado, mas o que estava por acontecer logo, assim também os demônios se apressam a anunciar coisas a outros com o único fim de enganá-los. Em verdade, se entretanto, a Providência tivesse uma disposição especial quanto à água ou aos viajantes, e isto é perfeitamente possível, então se veria ser mentira a informação dos demônios, e ficariam enganados os que neles puseram sua confiança.

33. Assim surgiram os oráculos gregos e assim foi desviado o povo da antiguidade pelos demônios. Com isto deve-se dizer também quanto engano foi preparado para o futuro, mas o Senhor veio para suprimir os demônios e sua vilania. Não conhecem nada fora de si mesmos, mas vendo que outros têm conhecimento, como ladrões apoderam-se dele e o desfiguram. Praticam mais a conjectura do que a profecia. Por isso, ainda que às vezes pareçam estar na verdade, ninguém deveria se admirar. Na realidade, também os médicos, cuja experiência em enfermidades lhes vem de haver observado a mesma doença em diferentes pessoas, fazem muitas vezes conjecturas baseadas em sua prática e predizem o que se vai passar. Também os pilotos e camponeses, observando as condições do tempo, prognosticam se vai haver tempestade ou bom tempo. A ninguém ocorreria dizer que profetizam por inspiraçao divina, mas pela experência que lhes dá a prática. Em consequência, se também os demônios adivinham algumas destas mesmas coisas e as dizem, nem por isso devemos maravilhar-nos nem fazer absolutamente caso delas. De que serve aos ouvintes saber dias antes o que se vai passar? Ou porque afanar-se em saber tais coisas, mesmo supondo que este conhecimento seja verdadeiro? Por certo não é este o elemento fundamental da virtude nem tampouco prova de nosso progresso; pois ninguém é julgado pelo que não sabe, e ninguém é chamado bem-aventurado pelo que aprendeu e sabe. O juízo que nos espera a cada um é se guardamos a fé e observamos fielmente os mandamentos.

34. Daí, não demos importância a estas coisas, nem nos afanemos na vida ascética com o fim de sabermos o futuro, mas para agradar a Deus vivendo bem. Deveríamos orar, não para conhecer o futuro nem deveríamos pedir isto como recompensa pela prática ascética, mas que o fim de nossa oração deve ser que o Senhor seja nosso companheiro para consegurmos a vitória sobre o demônio. Se algum dia, porém, chegarmos a conhecer o futuro, mantenhamos pura nossa mente. Tenho a absoluta confiança de que se a alma é integralmente pura e está em seu estado natural, alcança a claridade da visão e vê mais e mais longe que os demônios. A ela o Senhor revela as coisas. Tal era a alma de Eliseu que viu o que se passou com Giezi (2 Rs 5,26), e contemplou os exércitos que estavam perto (2 Rs 6,17)

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