parte 10

 

42. Por isso, se até o próprio demônio confessa que não tem poder, deveríamos desprezá-lo totalmente. O mau e seus cães têm, é verdade, todo um provimento de velhacaria; nós, porém, conhecendo sua impotência, podemos desprezá-los. Não nos entreguemos, pois, nem nos desalentos, nem deixemos que haja covaria em nossa alma nem nos causemos medo a nós próprio, pensando: 'Oxalá não venha o demônio e me faça cair! Queira Deus que não me leve para cima ou para baixo, ou apareça de repente e me tire dos eixos! Não deveríamos absolutamente ter semelhantes pensamentos nem afligir-nos como se fôssemos perecer. Antes tenhamos coragem e alegremo-nos sempre como homens que estão sendo salvos. Pensemos que o Senhor está conosco, Ele que afugentou os maus espíritos e lhes tirou o poder.

Meditemos sempre sobre isto e recordemos que enquanto o Senhor estiver conosco, nossos inimigos não nos causarão dano. Pois quando vêm, atuam como nos encontram, e, no estado de alma em que nos encontrem, apresentam suas ilusões (39). Se nos vêem cheios de medo, de pânico, imediatamente tomam posse como bandidos que encontram a praça desguarnecida; tudo o que pensemos de nós, aproveitam-no com redobrado interese. Se nos vêem temerosos e acovardados, aumentam nosso medo o mais que possam em forma de imaginações e ameaças, e assim a pobre alma é atormentada para o futuro. Se nos encontram, porém, alegrando-nos no Senhor; meditando nos bens futuros e contemplando as coisas que são do Senhor; considerando que tudo isto está em Suas mãos e que o demônio não tem poder sobre um cristão, que, de fato, não tem poder sobre ninguém, absolutamente, então, vendo a alma salvaguardada com tais pensamentos, envergonham-se e voltam atrás. Assim, quando o inimigo viu Jó fortificado, retirou-se dele, enquanto que encontrando Judas desprovido de toda defesa, aprisionou-o.

Por isso, se quisermos desprezar o inimigo, mantenhamos sempre nosso pensamento nas coisas do Senhor e que nossa alma goze com a esperança (cf Rm 12,12). Veremos então como os enganos do demônio se desvanecem como fumo e vê-lo-emos fugir em lugar de perseguir-nos. Eles são, como disse, abjetos covardes, sempre receiosos (40) do fogo preparado para eles (Mt 25,41).

43. Observem também isto quanto à intrepidez que devem ter na presença deles. Cada vez que venha uma aparição não se precipitem imediatamente cheios de medo covarde, mas seja como for, perguntem primeiro com coração resoluto: 'Quem és e donde vens?' Se é uma visão boa, há de tranquilizá-los e mudar o medo em alegria. No entanto, se tem que ver com o demônio, vai desvanecer-se logo vendo o ânimo decidido de vocês, pois a simples pergunta: 'quem és e donde vens? 'é sinal de tranquilidade. Assim o aprendeu o filho de Nun (Jos 5,13s) e o inimigo se livrou de ser descoberto quando Daniel o interrogou (Dan 13,51-59).

VIRTUDE MONÁSTICA

44. Enquanto Antão discorria sobre esses assuntos com eles, todos se regozijavam. Aumentava em uns o amor à virtude, em outros desaparecia a neligência, e em outros era reprimida a vanglória. Todos prestavam atenção a seus conselhos sobre os ardis do inimigo, e se admiravam da graça dada a Antão pelo Senhor para discernir os espíritos.

Suas celas solitárias nas colinas eram assim como tendas cheias de coros divinos, cantando salmos, estudando, jejuando, orando, gozando com a esperança da vida futura, trabalhando para dar esmolas e preservando o amor e a harmonia entre si. E em realidade, era como ver um país diferente, uma terra de piedade e justiça. Não havia nem malfeitores nem vítimas do mal, nem acusações do cobrador de impostos (41), mas uma multidão de ascetas, todos com um só propósito: a virtude. Assim, ao ver estas celas solitárias e o admirável afastamento dos monges, não se podia deixar de elevar a voz e dizer: "Como são belas tuas tendas, ó Jacó, e tuas moradas, ó Israel! Como arroios se estendem, como horto junto ao rio, como tendas plantadas pelo Senhor, como cedros junto às águas (Num 24,5).

45. Antão voltou como de costume à sua própria cela e intensificou as práticas ascéticas. Dia por dia suspirava na meditação das moradas celestiais (cf Jo 14,2), com todo anelo, vendo a breve existência do homem. Ao pensamento da natureza espiritual da alma, envergonhava-se quando devia dispor-se a comer ou dormir ou a executar outras necessidades corporais. Muitas vezes, quando ia compartilhar seu alimento com muitos outros monges, sobrevinha-lhe o pensamento do alimento espiritual e, rogando que o perdoassem, afastava-se deles, como que envergonhado de que outros o vissem comendo. Comia, certamente, por necessidade de seu corpo, e frequentemente em companhia dos irmãos, perturbado por causa deles, mas falando-lhes pelo auxílio que suas palavras significavam para eles. Costumava dizer que se deveria dar todo seu tempo à alma antes que ao corpo. Certamente, posto que a necessidade o exige, algo de tempo deve ser dado ao corpo, mas em geral deveríamos dar nossa primeira atenção à alma e procurar seu progresso. Ela não deveria ser arrastada para baixo pelos prazeres do corpo, mas este é que deve ser posto sob a sujeição da alma. Isto, dizia, é o que o Salvador expressou: 'Não se preocupem por sua vida, pelo que hão de comer ou beber, nem estejam ansiosamente inquietos,: os mundanos é que buscam todas estas coisas, pois o Pai sabe que têm necessidade de tudo isto. Procurem primeiro seu Reino, e tudo o mais lhes será dado por acréscimo (Lc 12,22. 29-31; cf tb. Mt 6,31-33).

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