Parte 14

 

77. Eles estavam desconcertados e davam voltas ao assunto de uma e de outra forma. Antão sorriu e disse, de novo através de um intérprete (85): "Só ao ver as coisas já se tem a prova de tudo o que eu disse. Dado, porém, que vocês, supõe-se, confiam absolutamente nas demonstrações, e isto é uma arte em que vocês são mestres, e já que exigem de nós não adorar a Deus sem argumentos demonstrativos, digam-me isto primeiro: Como se origina o conhecimento preciso das coisas, em especial o conhecimento de Deus? É por uma demonstração verbal ou por um ato de fé? E que vem primeiro: o ato de fé ou a demonstração verbal?" Quando replicaram que o ato de fé precede e que isto constitui um conhecimento exato, disse Antão: "Bem respondido! A fé surge da disposição da alma, enquanto a dialética vem da habilidade dos que a idealizam. De acordo com isto, os que possuem uma fé ativa não necessitam de argumentos de palavras, e provavelmente os reputam supérfluos; pois o que apreendemos pela fé, vocês cuidam construí-lo com argumentações e amiúde nem sequem podem exprimir o que nós percebemos. A conclusão é que uma fé ativa é melhor e mais forte de que seus argumentos sofísticos.

78. Os cristãos, por isso, possuímos o mistério, não baseando-nos na razão da sabedoria grega (cf 1 Cor 1,17), mas fundados no poder de uma fé que Deus nos garantiu por meio de Jesus Cristo. Pelo que toca à verdade da explicação dada, notem como nós, iletrados, cremos em Deus, reconhecendo sua Providência a partir de suas obras. E quanto a ser nossa fé algo de efetivo, notem que nos apoiamos em nossa fé em Cristo, enquanto vocês a baseiam em disputas ou palavras sofísticas; seus ídolos fantasmas estão passando de moda, mas nossa fé se difunde em toda parte. Com todos seus silogismos e sofismas vocês não convertem ninguém do cristianismo ao paganismo, mas nós, ensinando a fé em Cristo, estamos despojandos os deuses do medo que inspiravam (86), de modo que todos reconhecem Cristo como Deus e Filho de Deus. Como toda sua elegante retórica, vocês não impedem o ensinamento de Cristo, mas nós, à simples menção do nome de Cristo crucificado, expulsamos os demônios que vocês veneram como deuses. Onde aparece o sinal da Cruz, ali a magia e a feitiçaria são impotentes e sem efeito.

79. Em verdade, digam-nos, onde ficaram seus oráculos? Onde os encantamentos dos egípcios? Onde estão suas ilusões e os fantasmas dos magos? Quando terminaram estas coisas e perderam seu significado? Não foi acaso quando chegou a Cruz de Cristo? Por isso, será ela que merece desprezo e não, antes, o que ela deitou abaixo, demonstrando sua impotência? Também é notável o fato de que jamais a religião de vocês foi perseguida; ao contrário, em todas as partes goza de honra entre os homens. mas os seguidores de Cristo são perseguidos, e sem embargo é a nossa causa que floresce e prevalece e não a sua. Com toda a tranquilidade e proteção do que goza, sua religião está morrendo, enquanto a fé e o ensinamento de Cristo, desprezados pro vocês e frequentemente perseguidos pelos governantes, encheram o mundo. Em que tempo resplandeceu tão brilhantemente o conhecimento de Deus? Ou em que tempo apareceram a continência e a virtude da virgindade? Ou quando foi tão desprezada a morte como quando chegou a Cruz de Cristo? E ninguém duvida disto ao ver os mártires que desprezam a morte por causa de Cristo, ou ao ver as virgens da Igreja que por causa de Cristo guardam seus corpos puros e sem mancha.

80. Estas provas bastam para demonstrar que a fé em Cristo é a única religião verdadeira. Aqui porém estão vocês, que buscam conclusões baseadas no raciocínio, vocês que não têm fé. Nós não buscamos provas, como diz nosso Mestre, 'com palavras persuasivas de sabedoria humana'(1 Cor, 2,4), mas persuadimos os homens pela fé que tangivelmente precede todo raciocínio baseado em argumentos. Vejam, aqui há alguns que são atormentados pelos demônios". Estes eram gente que tinham vindo para vê-lo e sofriam por causa dos demônios; fazendo-os adiantar-se, disse: "Pois bem, curem-nos com seus silogismos ou com qualquer magia que desejem, invocando a seus ídolos; ou então, se não podem , deixem de lutar contra nós e vejam o poder da Cruz de Cristo". Dito isto, invocou a Cristo e fez sobre os enfermos o sinal da Cruz, repetindo a ação por segunda e terceira vez. Imediatamente as pessoas se levantaram completamente sãs, tendo-lhes voltado o uso da razão e dando graças ao Senhor. Os assim chamados filósofos estavam assombrados e realmente atônitos pela sagacidade do homem e pelo milagre realizado. disse-lhes, porém, Antão: "Por que se maravilham com isto? Não somos nós, mas Cristo quem age através do que Nele crêem. Creiam vocês também e verão que não é palavreado e sim fé que pela caridade opera para Cristo (cf Gl 5,6); se vocês também abraçam isto, não necessitarão andar buscando argumentos da razão, mas verão que a fé em Cristo é suficiente." Assim falou a Antão. Quando partiram, admiraram-no, abraçaram-no e reconheceram que os havia ajudado.

OS IMPERADORES ESCREVEM A ANTÃO

81. A fama de Antão chegou aos imperadores. Quando Constantino Augusto e seus filhos Constâncio Augusto e Constante Augusto ouviram estas coisas, escreviam-lhe como a um pai, rogando-lhe que lhe respondesse. Ele, no entanto, não deu muita importância aos documentos nem se alegrou pelas cartas; continuou o mesmo que antes de lhe escrever o imperador. Quando lhe levaram os documentos, chamou-os e disse: "Não se devem surpreender -se um imperador nos escreve, porque é homem; deveriam surpreender-se é de que Deus haja escrito a lei para a humanidade e nos tenha falado por meio de seu próprio Filho". Em verdade, nem queria receber as cartas, dizendo que não sabia que responder. Os monges, porém, persuadiram-no manifestando-lhe que os imperadores eram cristãos e que se ofenderiam de ser ignorados; então acedeu a que lhas lessem. E respondeu, recomendando-lhes que prestassem culto a Cristo e ando-lhes o saudável conselho de não apreciar demasiado as coisas deste mundo, mas antes recordando o juízo futuro, e saber que só Cristo é o Rei verdadeiro e eterno. Rogava-lhes que fossem humanos e atendessem à justiça e aos pobres. E eles ficaram felizes ao receber sua resposta. Por isso era amado por todos, e todos desejavam tê-lo como pai.

ANTÃO PREDIZ OS ESTRAGOS DA HERESIA ARIANA

82. Argumentando assim de si mesmo, e contestando assim aos que o buscavam, voltou à Montanha Interior. Continuou observando suas costumadas práticas ascéticas, e muitas vezes, quando estava sentado ou caminhando com visitantes, quedava-se mudo, como está escrito no livro de Daniel (cf 4,16 LXX). Depois de algum tempo, retomava o que estivera dizendo aos irmãos que o acompanhavam, e os presentes apercebiam-se de que havia tido uma visão; pois amiúde quando estava na montanha via coisas que aconteciam até no Egito, como o confessou ao bispo Serapião (87), quando este se encontrava na Montanha Interior e viu Antão em transe de visão.

Numa ocasião, por exemplo, enquanto estava sentado trabalhando tomou a aparência de alguém que estivesse em êxtase e se lamentava continuamente pelo que via. Depois de algum tempo voltou a si, lamentando-se e tremendo, e se pôs a orar prostrado, ficando longo tempo nessa posição. E quando se endireitou, o ancião estava chorando. Agitaram-se então os que estavam com ele, alarmaram-se muitíssimo, e lhe perguntaram o que se passava; urgiram-no por tanto tempo que o obrigaram a falar. Suspirando profundamente, disse: "O', filhos meus, seria melhor morrer antes que se sucedam as coisas que vi". Fazendo-lhe mais perguntas, disse entre lágrimas: "A ira está a ponto de golpear a Igreja, e ela está a ponto de ser entregue a homens que são como bestas insensíveis. Vi a mesa da casa do Senhor e havia mulas em torno, rodeando-a por todas as partes e dando coices com seus cascos em tudo e que havia nela, tal como o escoicear de uma tropa que golpea desenfreada. Vocês ouviram seguramente como eu me lamentava; é que ouvi uma voz que dizia: "Meu altar será profanado".

Assim falou o ancião. E dois anos depois chegou o atual assalto dos arianos e o saque das igrejas (88), quando à força se apoderaram dos vasos e os fizeram levar pelos pagãos; quando também forçaram os pagãos de suas tendas para irem a suas reuniões, e em sua presença fizeram o que lhes aprouve sobre a sagrada mesa (89). Todos então nos apercebemos que o escoucear de mulas predito por Antão, era o que os arianos estão fazendo como bestas brutas.

Quando teve esta visão, consolou a seus companheiros: "Não percam a coragem, meus filhos, pois ainda que o Senhor esteja irritado, nos restabelecerá depois. E a Igreja recobrará rapidamente a beleza que lhe é própria e resplandecerá com seus costumados esplendor. Verão restabelecidos os que foram perseguidos, e a irreligião retirando-se de novo a suas próprias guaridas, e a verdadeira fé afirmando-se em toda parte, em liberdade completa. Tenham porém, cuidado em não se deixarem manchar com os arianos. Seu ensinamento não é do apóstolos, mas dos demônios e de seu pai, o diabo. É estéril e irracional, e falta-lhe inteligência, tal como às mulas lhes falta o entendimento (90).

ANTÃO, TAUMATURGO DE DUES E MÉDICO DAS ALMAS

83. Tal é a história de Antão. Não deveríamos ser céticos por se terem sucedido esses grandes milages por intermédio de um homem, pois tal é a promessa do Salvador: "Se tiverem fé ainda que seja como um grão de mostarda, dirão a este monte: 'Passa-te daqui para lá' e ele passará; nada lhes será impossível" (Mt 17,20). E também: "Em verdade lhes digo: tudo o que pedirem ao Pai em meu Nome Ele lhes dará... Peçam e receberão (Jo 16, 23s). É Ele quem diz a seus discípulos e a todos os que Nele crêem: "Curem os enfermos.... lancem fora os demônios; de graça o receberam, grátis devem dá-lo" (Mt 10,8).

84. Antão, pois, curava, não dando ordens mas orando e invocando o nome de Cristo, de modo que para todos era claro que não era ele quem atuava, mas o Senhor que mostrava seu amor pelos homens curando aos que sofriam, por intermédio de Antão. Este ocupava-se apenas da oração e da prática da ascese, e por esta razão levava sua vida na montanha, feliz na contemplação das coisas divinas, e pesaroso de que tantos o perturbassem e o forçassem a sair à Montanha Exterior.

Os juízes, por exemplo, rogavam-lhe que descesse da montanha já que para eles era impossível ir lá, devido ao grande número de gente envolta em pleitos. Pediram-lhe que fosse a eles para que pudessem vê-lo. Ele procurou livar-se da viagem e rogou-lhes que o dispensasssem de fazê-la. Eles no entanto insistiram, e mesmo mandaram-lhe réus com escolta de soldados, para que em consideração a eles se decidisse a descer. Sob tal pressão, e vendo-os lamentar-se, foi à Montanha Exterior. De novo, o incômodo que teve não foi em vão, pois ajudou a muitos e sua presença foi um verdadeiro benefício. Ajudou os juízes aconselhando-os a que dessem à justiça precedência sobre tudo o mais, que temessem a deus e que se recordassem de que "seriam julgados com a mesma medida com que julgassem" (Mt 7,2). Amava porém sua vida montanhesa acima de tudo.

85. Uma vez importunado por pesoas que necessitavam de ajua, e solicitado pelo comandante militar que enviou mensageiros a pedir-lhe que descesse, foi e falou algumas palavras acerca da salvação e a favor dos necessitados, e logo apressou-se a ir embora. Quando o duque (91), como o denominavam, rogou-lhe que ficasse, responeu que não podia passar mais tempo com eles e o satisfez com esta bela comparação: "Assim como um peixe morre quando fica algum tempo em terra seca, assim também os monges se perdem uando se tornam folgazões e passam muito tempo com vocês. Por isso, temos que voltar à montanha, como o peixe à água. De outro modo, se nos entretemos, podemos perder de vista a vida interior" (92). O comandante, ao ouvir isto e muitas coisas mais, reconheceu admirado que era verdadeiramente servo de Desu, pois como poderia um homem ordinário ter uma inteligência tão extraordinária se não fosse amado por Deus?

86. Havia uma vez um comandante - Balácio era seu nome - que como partidário dos execráveis arianos perseguia duramente os cristãos. Em sua barbárie chegava até a espancar as virgens e desnudar e açoitar os monges. Antão enviou-lhe por isso uma carta dizendo-lhe o seguinte; "Vejo que o juízo de Deus se aproxima de ti; deixa pois de perseguir os cristãos para que não te surpreenda o juízo; agora está a ponto de cair sobre ti". Balácio entretanto pôs-se a rir, jogou a carta no chão e nela cuspiu; maltratou os mensageiros e ordenou-lhes que levassem a Antão a seguinte mensagem: "Vejo que estás muito preocupado pelos monges; virei também a ti". Não haviam passado cinco dias quando o juízo de Deus caiu sobre ele. Balácio e Nestório, prefeito do Egito, haviam saído para a primeira estação fora de Alexandria, chamada Chereu; ambos iam a cavalo. Os cavalos pertenciam a Balácio e eram os mais mansos que ele tinha. Ainda não haviam chegado, quando os cavalos, como costumam fazer, começaram a retouçar um contra o outro, e de repente o mais manso dos dois, cavalgado por Nestório, mordeu Balácio, lançou-o por terra e o atacou. Rasgou-lhe de tal modo o músculo com seus dentes, que tiveram de levá-lo de volta à cidade, onde morreu depois de três dias. Todos se admiraram de que se cumprisse tão rapidamente o que Antão predissera.

87. Assim se escarmentaram os duros. Quanto aos demais que recorriam a ele, suas íntimas e cordiais conversações faziam-nos esquecer imediatamente os litígios e os levavam a considerar felizes os que abandonavam a vida do mundo. De tal modo lutava pela causa dos ofendidos que se podia pensar ser ele mesmo e não outros a parte agravada. Tinha além disso tal dom para ajudar a todos, que muitos militares e homens de grande influência abandonavam sua vida onerosa e faziam-se monges. Numa palavra, era como se Deus houvesse dado um médico ao Egito. Quem recorreu a ele na dor sem voltar com alegria? Quem chegou chorando por seus mortos e não se libertou imediatamente de seu pesar? Houve alguém que chegasse com ira e não a transformasse em amizade? Quem pobre ou arruinado foi a ele, e ao vê-lo e ouvi-lo não desprezou a riqueza, sentindo-se consolado em sua pobreza? Que monge negligente não ganhou novo fervor ao visitá-lo? Que jovem, chegando à montanha e vendo Antão, não renunciou logo ao prazer, começando a amar a castidade? Quem se lhe acercou atormentado por um demônio e não foi liberto? Quem chegou com a alma torturada e não encontrou a paz do coração?

88. Era algo único, na prática ascética de Antão, ter ele, como já foi dito, o dom do discernimento dos espíritos. Reconhecia seus movimentos e sabia muito bem em que direção seu esforço e ataque levava cada um deles. Não só ele próprio não foi enganado, mas alentando a outros que eram fustigados em seus pensamentos, ensinou-lhes como resguardar-se de seus desígnios, descrevendo a debilidade e os ardis dos espíritos que praticavam a possessão. Assim cada um se ia como que ungido por ele (93) e cheio de confiança para a luta contra os desígnios do diabo e de seus demônios.

E quantas jovens que tinham pretendentes mas que viram Antão só de longe, e permaneceram virgens por Cristo! Muita gente chegava a ele de terras estranhas, e também eles recebiam ajuda como os demais, voltando como enviados em seu caminho por um pai. E em verdade, agora que já se foi, todos, com órfãos de pai, se consolam e se confortam só com sua recordação, guardando ao mesmo tempo com carinho suas palavras de admoestação e de conselho.

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