Parte 13

 

VISÕES

65. São numerosas as histórias, e além disso todas concordes, que os monges transmitiram sobre muitas outras coisas semelhantes operadas por ele. E no entanto não parecem tão maravilhosas como outras ainda mais maravilhosas. Uma vez, por exemplo, à hora de noa (60), quando se pôs de pé para orar antes de comer, sentiu-se transportado em espírito e, estranho é dizê-lo, viu-se a si mesmo como se achasse fora de si mesmo e como se outros seres o levassem aos ares. Então viu também outros seres terríveis e abomináveis no ar, que lhe embargavam o passo. Como seus guias oferecessem resistência, os outros perguntaram sob que pretexto queria fugir de sua responsabilidade diante deles. E quando começaram eles próprios a pedir-lhe contas desde seu nascimento, intervieram os guias de Antão: "Tudo o que date desde o seu nascimento o Senhor apagou; podem pedir-lhe contas desde que começou a ser monge e se consagrou a Deus (61). Então começaram a apresentar acusações falsas e como não as puderam provar, tiveram de deixar-lhe livre a passagem. Imediatamente viu-se a si mesmo aproximando-se - ao menos assim lhe pareceu - e juntando-se a si mesmo, e assim Antão voltou de novo à realidade (62).

Esquecendo-se então de comer, passou todo o resto do dia e toda a noite suspirando e orando. Estava abismado de ver contra quantos inimigos devemos lutar e que trabalhos se tem para abrir passagem pelos ares. Lembrou-se de que é isto o que diz o apóstolo: "de acordo com o príncipe das potências do ar" (Ef 2,2). Aí está precisamente o poder do inimigo que peleja e trata de deter os que intentam passar. Por isto o mesmo apóstolo dá também sua especial advertência: "Tomem a armadura de Deus que os faça capazes de resistir no dia mau" (Ef 6,13), e "nada tendo que dizer contra nós, fique envergonhado (Tito 2,8). E nós que aprendemos isto, recordemos o que o mesmo apóstolo diz: "Se fui levado em meu corpo ou fora dele, não sei; Deus o sabe" (2 Cor 12,2). Paulo, porém, foi levado ao terceiro céu e ouviu "palavras inefáveis" (2 Cor 12,2.4), e voltou, enquanto Antão viu-se a si mesmo entrando nos ares e lutando até que ficou livre.

66. Noutra ocasião teve o seguinte favor de Deus: Quando sozinho na montanha e refletindo, não podia encontrar solução alguma, a Providência lha revelava em resposta à sua oração; o santo varão era ensinado por Deus com palavras da Escritura (cf Is 54,13; Jo 6,45; 1 Ts 4,9). Assim favorecido, teve uma vez discussão com alguns visitantes sobre a vida da alma e que lugar teria depois desta vida. Na noite seguinte chegou-lhe um chamado do alto: "Antão, sai para fora e veja!" Ele saiu, pois distinguia os chamados que devia atender, e olhando para o alto viu uma enorme figura, espantosa e repugnante, de pé, que alcançava as nuvens; viu além disto certos seres que subiam como com asas. A primeira figura estendia as mãos e alguns dos seres eram detidos por ela, enquanto outros voavam sobre ela, e havendo-a ultrapassado, continuavam sem maior incômodo. Contra eles o monstro rangia os dentes, alegrando-se porém pelos outros que haviam caído. Nesse momento uma voz dirigiu-se a Antão: "Compreende a visão!" (cf Dn 9,23). Abriu-se seu entendimento (cf Lc 24,45) e apercebeu-se de que isso era a passagem das almas (63) e de que o monstro que ali estava era o inimigo, o invejoso dos crentes. Sujeitava os que lhe correspondiam e não os deixava passar; mas os que ele não tinha podido dominar, tinha que deixá-los passar fora de seu alcance (64).

Tendo visto isso, e tomando-o como advertência, lutou ainda mais para adiantar cada dia na direção do que o esperava. Não tinha nenhuma inclinação para falar acerca destas coisas. Quando, porém, havia passado muito tempo em oração e absorto em toda essa maravilha, e seus companheiros insistiam e o importunavam para que falasse, era forçado a fazê-lo. Como pai não podia guardar um segredo ante seus filhos. Sentia que sua própria consciência era limpa e que contar-lhes isto poderia servir-lhes de ajuda. Conheceriam o bom fruto da vida ascética, e que muitas vezes as visões são concedidas como compensação pelas privações.

DEVOÇÃO DE ANTÃO AOS MINISTROS DA IGREJA - EQUANIMIDADE DE SEU CARÁTER

67. Era paciente por disposição e humilde de coração. Sendo homem de tanta fama, mostrava, no entanto, o mais profundo respeito aos ministros da Igreja, e exigia que a todo clérigo se desse maior honra do que a ele (65). Não se envergonhava de inclinar a cabeça diante de bispos e de sacerdotes. Se algum diácono chegava a ele pedindo-lhe ajuda, conversava com ele o que lhe fosse proveitoso, mas, chegando a oração, pedia-lhe que presidisse, não se envergonhando de aprender. De fato, muitas vezes propôs questões inquirindo os pontos de vista de seus companheiros, e se tirava proveito do que dizia o outro, mostrava-se grato.

Seu rosto tinha grande e indescritível encanto. E o Salvador lhe tinha dado por acréscimo este dom: se se achava presente numa reunião de monges e algum a quem não conhecia desejava vê-lo, esse tal, ao chegar, passava por alto os demais, como que atraído por seus olhos. Não eram nem sua estatura nem sua figura que o destacavam entre os demais, mas seu caráter sossegado e a pureza de sua alma. Ela era imperturbável e assim sua aparência externa era tranquila (66). O gozo de sua alma transparecia na alegria de seu rosto, e pela forma de expressão de seu corpo se sabia e conhecia a estabilidade de sua alma, como o diz a Escritura: "O coração contente alegra o semblante, o coração triste deprime o espírito" (Pr 15,13). Também Jacó observou que Labão estava tramando algo contra ele e disse a suas mulheres: "Vejo que o pai de vocês não me olha com bons olhos" (Gn 31,5). Também Samuel reconheceu Davi porque tinha olhos que irradiavam alegria e dentes brancos como o leite (cf 1 Sm 16,12; cf tb.Gn 49,12). Assim também era reconhecido Antão: nunca estava agitado, pois sua alma estava em paz; nunca estava triste porque havia alegria em sua alma.

POR LEALDADE À FÉ, ANTÃO INTERVÉM NA LUTA ANTI-ARIANA

68. Em assuntos de fé, sua devoção era sumamente admirável. Por exemplo, nunca se relacionou com os cismáticos melecianos, sabedor desde o começo de sua maldade e apostasia (67). Tampouco teve trato amistoso com os maniqueus (68) nem com outros hereges, à exceção unicamente das admoestações que lhes fazia para que voltassem à verdadeira fé. Pensava e ensinava que amizade e associação com eles prejudicavam e arruinavam a alma. Detestava também a heresia dos arianos (69), e exortava a todos a não se acercarem deles nem compartilhar de sua perversa crença. Uma vez quando alguns desses ímpios arianos chegaram a ele, interrogou-os detalhadamente; e ao aperceber-se de sua ímpia fé, expulsou-os da montanha, dizendo que suas palavras eram piores que veneno de serpentes.

69. Quando numa ocasião os arianos espalharam a mentira de que partilhava de suas opiniões, demonstrou que estava enojado e irritado contra eles. Respondendo ao chamado dos bispos e de todos os irmãos (70), desceu a montanha e entrando em Alexandria denunciou os arianos. Dizia que sua heresia era a pior de todas e precursora do anticristo. Ensinava ao povo que o Filho de Deus não é uma criatura nem veio "da não existência" ao ser, mas "é Ele a eterna Palavra e Sabedoria da substância do Pai". Por isso é ímpio dizer: 'houve um tempo em que não existia', pois a Palavra foi sempre coexistente com o Pai. Por isso, não se metam em nada com estes arianos sumamente ímpios: simplesmente 'não há comunidade entre a luz e as trevas' (2 Cor 6,14). Vocês devem se lembrar de que são cristãos tementes a Deus, mas eles ao dizerem que o Filho e Palavra de Deus é uma criatura, não se diferenciam dos pagãos 'que adoram a criatura em lugar de Deus Criador' (Rm 1,25). E estejam seguros de que toda a criação está irritada contra eles, porque contam entre as coisas criadas o Criador e Senhor de tudo, pelo qual todas as coisas foram criadas" (cf Gl 1,16).

70. Todo o povo se alegrava ao ouvir semelhante homem anatematizar a heresia que lutava contra Cristo (71). Toda a cidade corria para ver Antão. Também os pagãos e inclusive seus assim chamados sacerdotes iam à Igreja dizendo: "Vamos ver o homem de Deus" (72), pois assim o chamavam todos. Além disso, também ali o Senhor operou por seu intermédio expulsões de demônios e curas de doenças mentais. Muitos pagãos queriam também tocar o ancião, confiando em que seriam auxiliados, e em verdade houve tantas conversões nesses poucos dias como não tinham sido vistas em todo um ano. Alguns pensaram que a multidão o incomodava e por isso trataram de afastar todos dele, mas ele, sem se molestar, disse: "Toda essa gente não é mais numerosa do que os demônios contra os quais temos que lutar na montanha".

71. Quando se ia e estávamos nos despedindo dele, ao chegar à porta, uma mulher atrás de nós gritava: "Espera, homem de Deus, minha filha está sendo terrivelmente atormentada por um demônio! Espera, por favor, ou vou morrer, correndo!" O ancião ouviu-a, rogamos-lhe que se detivesse e ele acedeu com gosto. Quando a mulher se aproximou, sua filha estava arrojada ao chão. Antão orou e invocou sobre ela o nome de Cristo; a moça levantou-se sã e o espírito impuro a deixou. A mãe louvou a Deus e todos renderam graças. E ele também contente partiu para a Montanha, para o seu próprio lar.

A VERDADEIRA SABEDORIA

72. Tinha também um grau muito alto de sabedoria prática. O admirável era que, ainda que não tivesse educação formal (73), possuía no entanto engenho e compreensão despertos. Um exemplo: uma vez chegaram a ele dois filósofos gregos, pensando que podiam divertir-se com Antão. Quando ele, que nessa ocasião vivia na Montanha Exterior, catalogou os homens por sua aparência, dirigiu-se a eles e lhes disse por meio de um intérprete: "Por que, filósofos, se deram tanto trabalho vindo a um homem louco?" Quando eles lhe contestaram que não era louco, mas muito sábio, ele lhes disse: "Se vieram a um louco, seu incômodo não tem sentido; mas se pensam que sou sábio, então façam-se o que sou, porque se deve imitar o bom. Em verdade, se eu tivesse ido a vocês, tê-los-ia imitado; ao invés, agora que vieram a mim, convertam-se no que sou: eu sou cristão". Eles se foram, admirados; viram que até os demônios temiam a Antão.

73. Também outros da mesma classe foram a seu encontro na Montanha Exterior e pensaram que podiam zombar dele porque não tinha cultura. Antão lhes disse: "Bem, que dizem vocês: que é primeiro, o sentido ou a letra? E qual é a origem do outro: o sentido da letra ou a letra do sentido?" Quando eles expressaram que o sentido é primeiro e origem da letra, Antão disse: "Por isso, quem tem mente sã não necessita das letras" (74). Isto os assombou e a todos os circunstantes. Foram-se admirados de ver tal sabedoria num homem iletrado, que não tinha as maneiras grosseiras de quem viveu e envelheceu na montanha, mas era um homem simpático e cortês. Seu falar era sazonado com a sabedoria divina (cf Cl 4,6), de modo que ninguém lhe tinha má vontade, mas todos se alegravam de haver ido em sua procura.

74. E por certo, depois destes vieram outros. Eram daqueles que entre os pagãos têm reputação de sábios. Pediram-lhe que suscitasse uma controvérsia sobre nossa fé em Cristo. Quando procuravam arguir com sofismas a partir da pregação da divina Cruz, a fim de zombar, Antão guardou silêncio por um momento e, compadecendo-se primeiro da ignorância deles, disse logo por um intérprete que fazia excelente tradução de suas palavras: "Que é melhor: confessar a Cruz ou atribuir adultérios e pederastias aos assim chamados deuses? Pois manter o que mantemos é sinal de espírito viril e denota desprezo da morte, enquanto que o que vocês pretendem só fala de paixões desenfreadas. Outra vez, que é melhor: dizer que a Palavra de Deus imutável permaneceu a mesma ao tomar corpo humano para salvação e bem da humanidade de modo que ao compartilhar o nascimento humano pôde fazer os homens participantes da natureza divina e espiritual (cf 2 Pd 1,4), ou colocar o divino num mesmo nível que os seres insensíveis e adorar por isso a bestas e répteis e imagens de homens? Precisamente esses são os objetos adorados por seus homens sábios. Com que direito vêm rebaixar-nos porque afirmamos que Cristo apareceu como homem, sendo que vocês fazem provir a alma do céu, dizendo que se extraviou e caiu da abóbada do céu ao corpo? E oxalá fosse só o corpo humano, e não que se mudasse e emigrasse no de bestas e serpentes! (75). Nossa fé declara que Cristo veio para salvação das almas, e vocês erroneamente teorizam acerca de uma Alma incriada (76). Cremos no poder da Providência e em seu amor pelos homens e em que essa vinda não era portanto impossível para Deus, mas vocês, chamando à alma imagem da Inteligência (77), imputam-lhe quedas e fabricam mitos sobre sua possibilidade de mudança (78). Como consequencia fazem mutável a mesma Inteligência por causa da alma; pois enquanto imagem deve ser aquilo de que é imagem. Se vocês, entretanto, pensam semelhantes coisas acerca da Inteligência, recordem-se de que blasfemam do Pai da Inteligência" (79).

75. Em referência à Cruz, que dizem vocês ser o melhor: suportar a Cruz, quando homens malvados lançam mão da traição, e não vacilar ante a morte de maneira ou forma alguma, ou fabricar fábulas sobre as andanças de Isis e Osiris (80), as conspirações de Tifon, a expulsão de Cronos (81), com seus filhos devorados e seus parricídios? (82). Sim, aqui temos sua sabedoria!

E por que enquanto se riem da Cruz, não se maravilham da Ressurreição? Pois os mesmos que nos transmitiram um acontecimento escreveram também sobre o outro. Ou por que enquanto se lembram da Cruz, nada têm que dizer sobre os mortos devolvidos à vida, os cegos que recuperaram a vista, os paralíticos que foram curados e os leprosos que foram limpos, o caminhar sobre as águas e os outros sinais e milagres que mostram Cristo não como homem mas como Deus? Em todo caso, parece-me que vocês se enganam a si mesmos e que não têm nenhuma familiaridade real com nossas Escrituras. Leiam-nas, porém, e vejam que tudo quando Cristo fez prova que era Deus que habitava conosco para a salvação dos homens.

76. Mas falem-nos também vocês sobre seus próprios ensinamentos. Que podem, porém dizer acerca de coisas insensíveis senão insensatezes e barbaridades? Se entretanto, como ouço, querem dizer que entre vocês tais coisas se falam em sentido figurado (83), e assim convertem o rapto de Coré em alegoria da terra; a cólera de Hefestos, do sol, a Hera, do ar; a Apolo do sol; a Artemísia, da lua, e a Poseidon, do mar, ainda assim vocês não adoram o próprio Deus, mas servem à criatura em lugar de Deus que tudo criou. Se vocês compuseram tais histórias porque a criação é bela, não deveriam ter ido além de admirá-la, e não fazer das criaturas deuses para não dar às coisas criadas a honra do Criador (84). Nesse caso já seria tempo de darem à casa construída a honra devida ao arquiteto, ou a honra devida ao general, aos soldados. Agora, que têm que dizer a tudo isto? Assim saberemos se a Cruz tem algo que sirva para escarnecer-se dela.

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