Evágrio Pôntico
A via monástica de conversão
Conferência dada por D. Armand Veilleux, OCSO na American Benedictine Academy em 1984 e publicada em The American Benedictine Review 37 (1): 34-45, March 1986. A vocação monástica é , em última análise, uma vocação à unidade. E essa unidade só pode ser alcançada através de uma longa caminhada que implica transformações profundas sucessivas, isto é, através de um longo processo de conversão. Tal conversão se enraiza no batismo, pelo qual somos introduzidos naquela mais radical de todas as conversões vividas por um ser humano, a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Nenhuma conversão tem algum sentido exceto numa relação com o mistério pascal. O mistério pascal permanece no próprio coração da história humana. Os dois braços da cruz cobrem todo espaço de tempo, da aurora da Criação com Deus soprando seu sopro de vida na humanidade, ao retorno escatológico de tudo ao Pai na Parusia, com Jesus de Nazaré no centro, entregando seu espírito ao Pai e recebendo-o de volta para se tornar o primeiro de nosso gênero a partilhar plenamente da glória do Pai. Nossa conversão monástica, como forma de participação no mistério pascal de Cristo é um elemento daquela transformação global da humanidade e do cosmos todo sob a ação do Espírito de Cristo. Embora seja antes de tudo uma conversão do coração, tem seu sentido a partir da experiência de Deus da conversão humana em Cristo, e alonga caminhada da humanidade que a precedeu; e não será alcançada sem nossa participação ativa na construção do Reino de Deus, que implica uma transformação ou conversão radical da estrutura inteira da sociedade. Meu propósito aqui é de simplesmente mostrar como todos estes aspectos formam uma realidade unificada que recebe seu sentido do mistério pascal nos quais estamos inseridos pelo batismo. A EXPERIÊNCIA DE DEUS DE CONVERSÃO EM JESUS CRISTO O primeiro paradigma de conversão ou transformação é certamente a transformação de Deus à humanidade como descrita na Carta de Paulo aos Filipenses: "Embora fosse achado sob a forma de Deus, ele... se esvaziou de si mesmo e tomou a forma de um escravo, tendo nascido na semelhança dos homens. Por isto, Deus o exaltou grandemente e lhe concedeu o nome que está sobre todo outro nome" (Fil 2, 6-9). Se compreendemos a conversão simplesmente como uma passagem do pecado à virtude, não faz nenhum sentido, é claro, falar da conversão de Jesus ou da experiência de Deus de conversão em Jesus. Mas como ocorreu, é só por acidente é que aquela conversão é para nós uma passagem do pecado à virtude - só porque a humanidade pecou. A realidade da conversão é em si mesma algo muito mais profundo e mais amplo. Principia com nosso nascimento e é uma dimensão de qualquer passagem de um estágio de crescimento a um outro até que alcancemos a perfeição a que somos chamados. E Jesus certamente passou através deste processo. Após o processo pacífico, tranqüilo e lento de crescimento de Jesus em idade, graça e sabedoria, ocorreu a mudança radical do tempo de seu batismo. Quando desceu às águas para ser batizado por João, o Espírito veio sobre ele e permaneceu, a voz do Pai foi ouvida dizendo: "Tu és meu Filho muito amado". Neste momento fica experienciada na sua psique humana sua identidade de filho de Deus. E isto lhe dá um novo insight a respeito de sua missão. Esse senso de identidade e esse novo insight foram assumidos através de um longo período de solidão no deserto, onde teve de enfrentar terríveis tentações. Ele imediatamente começou não só a pregar mas também a realizar o Reino de Deus, curando os doentes, perdoando os pecadores e anunciando as Boas Novas aos pobres. Isto não foi feito sem encontrar oposição e aquelas confrontações mediante as quais novos insights sobre sua identidade e sua missão se desenvolveram. O processo todo veio a se completar na transformação radical realizada através da entrega por Jesus de seu espírito ao Pai e pela sua ressurreição pelo Pai. A experiência transformante vivida por Jesus é o ápice da busca às cegas da humanidade em direção ao seu fim último; dá seu sentido a toda a história humana que lhe antecede e que lhe segue. Quando fomos batizados, fomos inseridos na longa experiência humana de conversão que alcançou seu ponto culminante em Jesus de Nazaré. Sendo imersos no mistério pascal de Cristo, somos chamados a uma transformação pessoal que deve nos levar à nossa completa integração em Deus. O batismo não só nos estabelece num estado, o assim chamado estado de graça, mas sobretudo nos lança numa caminhada. E esta caminhada nos conduz muito para além de nós mesmos e para além dos limites de nossa própria experiência individual. Considerando a caminhada que precedeu nos ajuda a compreender onde nossa própria jornada nos conduz. Mas não dispomos de um mapa ou de um projeto para tanto. A estrada está inteiramente à nossa frente; e é totalmente inexplorada. Esta é a caminhada à qual nos comprometemos a seguir sem cessar quando, no dia de nossa profissão monástica, prometemos a "conversatio morum". CONVERSÃO DO CORAÇÃO COMO UMA CAMINHADA PARA O SELF A conversão pedida por Jesus a seus discípulos não é simplesmente uma modificação superficial de seu comportamento moral. Implica muito mais do que substituir um "ego" pessoal por um outro, mais respeitável ou mais em conformidade com os ditames e expectativas da sociedade. Requer uma transformação global e radical que toca todas as dimensões do ser humano, "espírito, alma e corpo", para usar as categorias da antropologia de São Paulo (cf. 1 Tes 5,23). De fato, tal conversão deve ser, antes de tudo, uma conversão do coração, a fonte de tudo o que é tanto bom ou mal na existência humana. Ezequiel descreveu em termos belos e poéticos a conversão que seria característica do novo Reino: "Eu lhes darei um coração novo e porei neles um espírito novo; tirarei o seu coração de pedra, e o substituirei por um coração de carne" (Ez 11,19). A caminhada para conversão é, antes de tudo, uma caminha interior aos recessos do coração, para a descoberta de nosso self verdadeiro, isto é, a pessoa que nós fomos chamados a ser por Deus, a imagem única ou a palavra única de Deus que somos nós, o nome que ele nos deu. Nessa parte mais profunda de nós mesmos, teremos de tocar em lugares que são-nos desconhecidos, territórios não familiares e mal assombrados onde somos forasteiros. Teremos de tornar-nos nômades dentro de nosso próprio mundo. A primeira realidade que encontraremos lá será nosso ego com todos seus limites. Quando nos aventuramos a caminhar por nosso próprio mundo interior, temos de estar prontos a ser confrontados com o medo e a confusão, com a tentação. Existe tal experiência de deserto no início de toda grande caminhada espiritual. Após seu batismo, Jesus começou um novo período de sua vida por uma caminhada para a solidão. Era a experiência do Profeta Elias, indo através da consciência de sua própria pobreza, seus temores e suas fraquezas, no deserto antes do seu encontro com a glória de Deus no Monte Horeb. Foi também a experiência de Paulo que passou uns anos misteriosos no deserto da Arábia após seu encontro com Cristo no caminho de Damasco. E milhares de mulheres e homens, desde os primeiros dias da vida monástica na Síria e no Egito até os nossos dias, foram para o deserto com o propósito de viver tal experiência. Essa viagem transformante pode se iniciar com uma experiência muito profunda ou mesmo arrasadora como a de Jesus no seu batismo, ou de Paulo no caminho de Damasco, ou a de Elias no caminho para o Monte Horeb. Muitos de nós, contudo, embarcarão quase imperceptivelmente nessa viagem, não após alguma experiência mística radical, mas simplesmente, gradualmente, à medida que vivemos: passando do sucesso à derrota, experimentando o insucesso em nossa carreira acadêmica, em nossas amizades, em nossa vida moral, e saboreando a frustração crescente de sonhos não realizados à medida que começamos a contar o número de nossos anos pela marca que deixam em nossos corpos. Estas podem todas parecer de início coisas superficiais mas elas nos tocam muito profundamente, e se nós aceitamos com honestidade, elas nos colocam em contato com nossas profundas limitações, com nossa pecaminosidade, e com todos os ídolos que cultuamos em segredo. E este é o primeiro passo no caminho para a conversão do coração. Quando os Padres do Deserto descreviam suas lutas com animais enormes e com serpentes pegajosas e demônios que faziam caretas (ou com mulheres sedutoras), estavam simplesmente descrevendo os diversos aspectos de seus próprios corações que a experiência do deserto os fazia descobrir. São o que Jung denomina nossa sombra, a parte inaceitável de nossa personalidade com a qual agora somos colocados face a face. Uma tal experiência de nossa pecaminosidade não é uma descoberta para ser feita somente no início de nosso noviciado! Pode ser a descoberta súbita ou encoberta, após muitos anos de oração e de serviço fiel a Deus, de dúvidas fortes e persistentes em nossos corações sobre Deus e nossa vocação; que paixões intensas emerjam; que o sentido e as verdades se deteriorem; que abundem as questões e não apareçam respostas. Novos tipos de escuridão e de esterilidade podem então nos tocar profundamente. Não são as pequenas trevas e a aridez dos primeiros anos que nos asseguravam pois elas de algum modo nos convenciam de que nós estávamos progredindo para os mais altos estágios da vida espiritual descritos por João da Cruz. Éramos um tanto orgulhosos daquela escuridão e daquela aridez. As novas são terríveis. O amor de Deus que anteriormente nos sustentou e nos motivou parece agora ilusório e evasivo. Quando Jesus tentou descrever a realidade da conversão, usou imagens que não eram imagens de transformação lenta e gradual, mas imagens que refletiam os dois acontecimentos mais traumáticos da vida humana: o nascimento e a morte. Ele sabia, mais do que qualquer outro, que a plenitude da vida não pode ser alcançada sem passar através do rio da morte. A Nicodemos (Jo 3,5-6), disse: "Em verdade eu vos digo, a menos que um homem nasça da água e do Espírito, ele não poderá entrar no Reino de Deus: o que nasceu da carne é carne; o que nasceu do Espírito é espírito." Mas depois quando descreveu a condição para tal vida: "Em verdade vos digo a menos que um grão de trigo caia na terra e morra, permanecerá um único grão; mas se morrer, produzirá uma rica colheita." (Jo 12,24-25). Se nas trevas de nossa noite, desejando entender o que está acontecendo, vamos ao Mestre para lhe pedir um conselho ou consolo, sua resposta seria provavelmente tão enigmática para nós quanto para o pobre Nicodemos. Com muita freqüência a entrada na vida monástica é considerada como "a conversão" (ou "a segunda!, seguindo a primeira do batismo). O resto de nossa vida se supõe ser um crescimento e desenvolvimento tranqüilo, se não sempre fácil, e perseverança fiel. Nosso voto de "conversatio morum" é entendido como o compromisso de não parar em nossa caminhada reta e tranqüila para a perfeição. Da mesma forma, tendemos hoje a privilegiar "conversões instantâneas", experiências místicas subitamente transformantes. O perigo é que tais conversões podem ser simplesmente mudanças de comportamento, a troca de um "ego" por outro "ego". Em todo caso, mesmo a mais extraordinária experiência de Deus é usualmente o primeiro passo numa longa caminhada para a conversão, e não isenta a pessoa de entrar no deserto de seu próprio coração e vagar lá, com freqüência por anos, como o povo de Israel no deserto. É neste espírito que os primeiros monges iam para o deserto, para entrar em contato com seu próprio coração e encontrar neste campo de batalha as forças do mal e derrotá-las seguindo o exemplo do Cristo e com sua graça, e assim apressar a vinda do fim dos tempos. Todos os tesouros, os dolorosos tesouros, de tais experiências humanas de conversão podem ser perdidos quando se coloca uma ênfase indevida sobre experiências místicas extraordinárias, sobre um entusiasmo carismático não realista, ou quando as práticas ascéticas substituem a plenitude de vida à qual nós somos chamados. A ascese é necessária e indispensável, mas pode também ser uma desculpa conveniente para fugir da dor do crescimento. Pode ser uma maneira conveniente de nos isentar do processo doloroso de aprender a cuidar, a escutar, a viver, a amar - noutras palavras, de chegar "gradualmente" à plenitude da perfeição. Neste contexto, uma palavra sobre a formação monástica é talvez necessária. Se nossa formação monástica se preocupa somente com transformar-nos em bons e edificados monges e monjas, ou com preparar-n os para ser bons ministros pastorais e não nos encoraja a avançar nessa caminhada solitária através do deserto de nossa pecaminosidade para o encontro pessoal e amedrontador com o Deus vivo, ela falhou. E toda nossa atividade será nada mais do que construtora do ego e certamente não construtora do Reino. Paradoxalmente, tentar olhar para fora de nós mesmos e tentar viver de acordo com ideais e expectativas externas podem impedir a autêntica conversão de que estamos falando. E temo que com muita freqüência, nossa formação monástica faz exatamente isto. Em lugar de levar as pessoas a uma conversão dolorosa, nós as convidamos a vestir um belo ego novo sobre o antigo. Quando as pessoas tentam encontrar o chão de sua identidade somente em fazer coisas e em viver os papéis sociais ou as expectativas da comunidade, estão de modo inconsciente promovendo um falso self. Os ideais muito bons em si mesmos, tais como ser um bom noviço, um bom abade, uma boa prioresa, um bom professor ou um bom pastor, podem se tornar obstáculos para uma conversão mais profunda. Em geral temos muito medo de deixar partir nossas próprias criações e permitir a Deus que nos toque e faça nascer nosso self verdadeiro. Se corajosamente continuamos nossa caminhada pelo deserto de nossos corações, eventualmente alcançaremos de algum modo o chão de nosso ser, onde ele cresce do Ser, onde nosso próprio self é um com O Um que é a plenitude do Self, de tal modo que podemos dizer com Paulo: Não sou eu que vivo, é Ele que vive em mim. A conversão nos leva a uma imagem renovada de nós mesmos, de Deus e de nossos próximos. Ou melhor, ela nos permite ir para além das imagens e transcender, naquela simplicidade abençoada, que é o fim último da vida monástica, tudo que nos leva para longe de nós mesmos, de Deus e de nossos irmãos. CONVERSÃO DA SOCIEDADE AO REINO DE DEUS Embora a conversão seja antes de tudo algo extremamente íntimo e pessoal - a conversão do coração- não pode ser tão privada quanto solitária. Deve-se tornar uma conversão coletiva através da qual a transformação da Igreja e da sociedade se dão. A conversão pode na verdade acontecer a muitas pessoas ao mesmo tempo e elas podem formar uma comunidade para sustentar uma à outra em sua auto-transformação, e ajudar uma à outra para resolver as implicações e em realizar a promessa de sua nova vida. É neste maneira que a vida cenobítica e outras formas de vida comunitária na Igreja nasceram. Tal conversão pode passar de geração à geração e disseminar de uma cultura a outra. Mas num nível mais profundo, a conversão está intimamente relacionada com o Reino de Deus. Quando João Batista convidava os judeus à conversão, dizia: "Arrependei-vos, pois o Reino de Deus está próximo", e quando Jesus iniciou sua própria pregação, proclamava "Arrependei-vos, o Reino de Deus está próximo". A própria experiência de Jesus de conversão em seu batismo foi a descoberta não só de sua identidade mas também de sua missão de pregar e atualizar o Reino de Deus, e o início de sua realização. Se nossa conversão é autêntica, se, tornando-se a pessoa que somos chamados a ser, nos tornamos mais nosso verdadeiro self e assim, mais identificados com o Um que é a plenitude do Self, também receberemos a revelação de nossa missão pessoal única na edificação do Reino de Deus. Esta foi a experiência dos Apóstolos. Levou tempo para que compreendessem a mensagem de Jesus. No momento de sua morte, eles ainda estavam muito longe de tal compreensão. Eram covardes: fugiram e Pedro negou seu Mestre. No entanto, no perdão experimentado através da paixão, morte e ressurreição de Cristo, viram-e a si mesmos de um novo modo e abraçaram a Jesus Cristo como Senhor. Ligaram-se a ele de uma nova maneira, e assim descobriram sua própria missão na construção do Reino. Nossa missão, embora enraizada em nosso batismo, tem de ser descoberta, como a dos Apóstolos, na experiência profunda de comunalidade e solidariedade com todas as pessoas afligidas pela pobreza da condição de pecado e em necessidade de cura. No entanto, são todos aqueles com os quais facilmente experimentamos que temos preconceito e intolerância. O Reino de Deus como pregado por Jesus implica uma transformação radical da estrutura inteira da sociedade, e a conversão individual do coração recebe seu sentido a partir de ser uma pequena parte constitutiva daquela transformação grande e profunda. Aquela transformação do Reino, assim como a conversão individual, requer, em algum momento, uma ruptura radical. O Reino não evolui realmente: ele irrompe. Não é só espiritual, pois implica uma revolução total das estruturas do mundo antigo. Daí ser apresentado como boa nova para os pobres, luz para o cego, cura para o coxo, escuta para o surdo, liberdade para os prisioneiros, libertação para os oprimidos, perdão para os pecadores e vida para os mortos (cf. Lc 4, 18-21; Mt 11,3-5). Tal Reino não é o outro mundo, mas este mundo transformado e feito novo. Esta é a mensagem das Bem Aventuranças. Tendemos a interpretá-las como se Jesus estivesse prometendo felicidade só para a vida após a morte, num distante "Além". "Felizes os pobres - às vezes compreendemos - porque, após sua vida miserável na terra a eles será dado o Reino dos céus; felizes os que sofrem, pois eles serão consolados com as alegrias do céu; felizes são os famintos, pois depois de ter morrido de fome eles serão alimentados no céu com um maravilhoso alimento espiritual, e assim por diante..." Este não é o ensinamento de Jesus. Quando ele declara os pobres felizes, é porque foi ele que veio libertá-los de sua pobreza; quando declara os sofredores felizes, é porque é ele que lhes traz consolação; quando declara os famintos felizes, é porque ele que veio libertá-los de sua fome. O que Jesus começou, seus discípulos foram chamados a levar à plenitude. O Reino de Deus deve primeiro ser realizado aqui na terra, no espaço e no tempo. Se for realizado aqui na terra, durará para sempre, pois é divino e uma vez que é a realização da dimensão divina do humano sendo criado à imagem de Deus. Sua plenitude marcará o final dos tempos. E então, as Bem Aventuranças não são um tranqüilizante espiritual destinado a nos ajudar a agüentar as durezas desta vida em espera de um "Além". São um chamado, uma missão confiada a todos nós: a missão de transformar, de converter o mundo. Isto, é claro, implica uma espera escatológica. O Reino de Deus está aqui mas não ainda completamente realizado. Há uma urgência de alcançá-lo. Isto implica também uma luta contínua. Os poderes demoníacos que achamos em nós mesmos enquanto entramos na nossa caminhada solitária estão presentes e ativos na sociedade. São Paulo, usando a terminologia dos gnósticos de seu tempo, os denomina de poderes e principados deste mundo. O significado de nossa ascese, de nossa "conversatio", é apressar a vitória final do reino da luz sobre o reino das trevas. O fim dos tempos não é o momento em que o mundo cessar de existir, mas o momento em que será completamente transformado no Reino de Deus. Uma vida de conversão é uma vida vivida com a consciência constante dessa urgência: "Tende os vossos cintos cingidos em vossas cinturas e guardai as vossas lâmpadas acesas. E sede com quem espera o seu senhor voltar das núpcias, a fim de lhe abrir logo que ele chegar e bater" (Lc 12, 35-36). Jesus, no Evangelho, torna muito claro que a conversão é uma escolha entre dois senhores. Quer servimos as principalidades e poderes deste mundo (personificados por Jesus sob o nome de Mammon) ou servimos o Deus pessoal, também com um nome pessoal, Abba. Não há uma possibilidade de meio termo. É preciso fazer uma escolha pessoal. Vivemos nossa conversão monástica num mundo concreto onde uma das grandes manifestações do poder do mal é a tremenda disparidade entre ricos e pobres (países ricos e pobres assim com indivíduos ricos e pobres dentro de cada país). As principais conseqüências desta disparidade são a fome e a guerra. Para nós que vivemos uma vida monástica, assim como para qualquer outro cristão batizado que tenha a responsabilidade de construir o Reino de Deus, o primeiro passo para a conversão nesse aspecto deverá ser compreender quanto somos co-responsáveis por essa situação coletiva de pecado. Nós todos estamos comprometidos com ela pelo próprio fato de que todos nos aproveitamos dela. Demos aqui um simples exemplo: Estamos todos bem alimentados, bem vestidos e bem abrigados. Para chegar a uma reunião como esta, tomamos um avião, um ônibus, um carro. Todas estas coisas são algo de inatingível para centenas de milhões de pessoas. O sistema que torna estas coisas disponíveis para nós é o mesmo sistema que priva o resto da humanidade com vistas a nos privilegiar. Sei que as soluções para isto não são nem fáceis nem simples. Mas ao menos o fato de que não temos soluções prontas não nos deve tornar cegos para o problema real. A conversão de Paulo foi uma consciência radical da identificação de Deus com os oprimidos: "Por que tu ME persegues?" Jesus disse a ele. Por essa simples questão, tudo nele foi abalado: sua própria identidade, sua imagem de Deus, sua compreensão dos homens. Qualquer compreensão real de Mateus 25 e qualquer clara consciência da identificação de Deus com os menores deste mundo, deveria efetuar em nós a mesma conversão. Um segundo passo na conversão é a análise da situação. Dom Oscar Romero, numa homilia feita pouco antes de seu assassinato, dizia: "Uma conversão cristã verdadeira deve revelar o mecanismo social que torna o operário e o camponês pessoas marginalizadas". E, de fato, toda consciência traz com ela a responsabilidade de agir. A consciência do mal social é certamente maior hoje em dia do que em todo tempo anterior. Mas não é suficiente estar consciente; não é suficiente assinar abaixo-assinados. Devemos ser criativos. E ser criativos em nossos esforços de conversão significa encontrar modos de dissociar a nós mesmos - individual e coletivamente - de um sistema econômico e social em que os pobres não ocupam o lugar privilegiado a eles designado pelo amor gratuito e preferencial do Pai por eles. Os Padres do Deserto viam o mal na sociedade do seu tempo. Não condenavam a soceidade; reconheciam a presença do mesmo mal em si mesmos e lutavam neste nível. Expressaram suas lutas em seus escritos, usando uma forma mitológica de linguagem. Os mitos que desenvolveram foram muito poderosos em levar várias gerações sucessivas a experimentar a conversão. Por alguns séculos agora, embora consideremos encantador ler por vezes essas extravagantes histórias míticas dos Padres do Deserto, substituímos sua mitologia por nossa teologia e por nossas espiritualidades. Mas estes sistemas não parecem nos estar ajudando muito. Pode ser que tenhamos de reinventar uma linguagem mítica e uma expressão mítica de nossa experiência monástica. CONCLUSÃO: INTEGRAÇÃO FINAL Num tempo em que os primeiros grupos cristãos estavam tentados a ahcar sua segurança psicológica e sua coesão mediante uma profunda hostilidade contra os judeus, considerados por eles como responsáveis pela morte de Jesus, um dos aspectos mais extraordinários da conversão de Paulo foi que ele resistiu a esta reorientação simplista da agressividade por vezes achada em convertidos. Não só harmonizou sua própria identidade judaica com sua fidelidade ao Cristo, mas dedicou três capítulos inteiros de sua Carta aos Romanos (9 a 11) para demonstrar, por vezes de modo muito elaborado, como os judeus podiam ser salvos a despeito de sua rejeição de Cristo. Através dos séculos, os cristãos muitas vezes cederam à tentação de reforçar suas fileiras pela guerra das Cruzadas. Grandes monges por vezes foram levados por papas e patriarcas a tais movimentos. Mas isto é em si mesmo o mais alheio possível à conversão monástica. Pela ascensão dos doze graus de humildade, os discípulos de São Bernardo tendem para a pureza de coração, ou a simplicidade abençoada que, na terminologia mais moderna, chamaríamos de "integração final". Aqueles que alcançaram essa integração final não só estão covnertidos em seu próprio self e portanto na plenitude do Self, que é em Cristo, mas são também um com todo ser humano e com o mundo todo. Enquanto pertencentes a uma comunidade local e viendo numa cultura concreta, trancendem todas as culturas, ideologias e sistemas. Podem, por suas próprias vidas, ajudar a sociedade a serconvertida à sua unidade última, e apressar a reunificação escatológica em Cristo. Numa era em que, em alguns círculos políticos e eclesiásticos, o apelo é de novo a se engajar em guerras santas, esse aspecto da tradição monástica e da conversão monástica certamente são dignos de ser lembrados. Resumamos o processo acima descrito. Pela nossa profissão monástica, nos comprometemos a viver em plenitude nossa participação no mistério pascal de Cristo no qual fomos introduzidos pelo batismo. Isto o fazemos através de uma longa caminhada ou conversão que nos conduz à nossa identidade pessoal em Cristo, através de uma série de morte às múltiplas camadas de nosso ego. Esta é antes de tudo uma conversão do coração na qual recebemos o Espírito de Jesus que nos conduz ao deserto de nossa condição de pecado e a experimentar a misericórdia e o perdão. Essa experiência desenvolve em nós um senso de compaixão e de solidariedade que nos desperta para nossa missão pessoal na conversão do mundo presente ao Reino de Deus. O objetivo último desta caminhada é não só nossa própria integração pessoal final, mas a integração final do cosmos todo por fim transformado no Reino Eterno de Deus.
Armand Veilleux, OCSO.
Traduziu: Cecilia Fridman, Rio Negro,PR, para o Mosteiro Trapista Nossa Senhora de Novo Mundo, 4.7.1999. NOTAS