PARTE 6
CONFERÊNCIA DE ANTÃO AOS MONGES SOBRE O DISCERNIMENTO DOS ESPÍRITOS E EXORTAÇÃO À VIRTUDE (16-43)
16. Um dia em que ele saiu, vieram todos os monges e lhe pediram uma conferência. Falou-lhes em língua copta, como segue:
"As Escrituras bastam realmente para nossa instrução. No entanto, é bom para nós alentar-nos uns aos outros na fé e usar da palavra para estimular-nos. Sejam, por isso, como meninos e tragam a seu pai o que saibam e lho digam, tal como eu, sendo o mais velho, reparto com vocês meus conhecimento e minha experiência.
Para começar, tenhamos todos o mesmo zelo, para não renunciar ao que começamos, para não perder o ânimo, para não dizer: 'Passamos demasiado tempo nesta vida ascética'. Não, começando de novo cada dia, aumentemos nosso zelo. Toda a vida do homem é muito breve comparada ao tempo vindouro, de modo que todo o nosso tempo é nada comparado com a vida eterna (28). No mundo, tudo se vende; e cada coisa se comercia segundo seu valor por algo equivalente; mas a promessa da vida eterna pode comprar-se por muito pouco. A Escritura diz: 'Ainda que alguém viva setenta anos, e o mais robusto até oitenta, a maior parte é fadiga inútil' (Sl 89,10). Se, pois, vivemos todos nossos oitenta anos, ou mesmo cem, na prática da vida ascética, não vamos reinar o mesmo período de cem anos, mas em vez dos cem reinaremos para sempre. E ainda que nosso esforço seja na terra, não receberemos nossa herança na terra mas o que nos foi prometido no céu. Mais ainda, vamos abandonar nosso corpo corruptível e recebe-lo-emos incorruptível (cf 1Cor 15,42).
17. Assim, filhinhos, não nos cansemos nem pensemos que nos afastamos muito tempo ou que estamos fazendo algo grande. Pois 'os sofrimentos da vida presente não podem comparar-se com a glória futura que nos será revelada' (Rm 8,18). Não olhemos tampouco para trás, para o mundo, crendo que renunciamos a grandes coisas, pois também o mundo é muito trivial comparado com o céu. E ainda que fôssemos donos de toda a terra e renunciássemos a toda ela, nada seria isto comparado com o reino dos céus. Assim como uma pessoa desprezaria uma moeda de cobre para ganhar cem moedas de ouro, assim o que é dono de toda a terra e a ela renuncia, dá realmente pouco e recebe cem vezes mais (cf Mt 19,29). Se, pois, nem sequer toda a terra equivale ao céu, certamente o que entrega uma porção de terra não deve jactar-se ou penalizar-se: o que abandona é praticamente nada, ainda que seja um lar ou uma soma considerável de dinheiro aquilo de que se separa.
Devemos, além disso ter em conta que se não deixamos estas coisas por amor à virtude, teremos depois de abandoná-las de qualquer modo e a miúdo também, como nos recorda o Eclesiastes (2,18; 4,8; 6,2), a pessoas às quais não teríamos querido deixá-las. Então, por que não fazer da necessidade virtude e entregá-las de modo a podermos herdar um reino por acréscimo? Por isso nenhum de nós tenha nem sequer o desejo de possuir riquezas. Do que nos serve possuir o que não podemos levar conosco? Por que não possuir antes aquelas coisas que podemos levar conosco: prudência, justiça, temperança, fortaleza, entendimento, caridade, amor aos pobres, fé em Cristo, humildade, hospitalidade? (29). Uma vez possuindo-as, veremos que elas vão diante de nós (30), preparando-nos as boas-vindas na terra dos mansos (cf Lc 16,9; Mt 5,4).
PERSEVERANÇA E VIGILÂNCIA
18. "Com estes pensamentos cada qual deve convencer-se de que não deve descuidar-se, mas considerar-se servo do Senhor e preso ao serviço de seu Mestre. Um servo, porém, não se atreve a dizer: "Já que trabalhei ontem, não vou trabalhar hoje". Tampouco vai por-se a calcular o tempo em que já serviu e descansar durante os dias que lhe ficam pela frente; não, dia após dia, como está escrito no evangelho ( Lc 12,35-38; 17,7-10; Mt 24,45), mostra a mesma boa vontade para que possa agradar a seu patrão e não causar nenhum incômodo. Perseveremos, pois, na prática diária da vida ascética, sabendo que se somos negligentes um só dia, Ele não nos vai perdoar em consideração ao tempo anterior, mas vai aborrecer-se conosco por nosso descuido. Assim o ouvimos em Ezequiel (Ez 18,24-26; 32,12s); assim Judas, numa só noite, destruiu o trabalho de todo o seu passado.
19. Por isso, filhos, perseveremos na prática do ascetimo e não desanimemos. Também nisso temos o Senhor que nos ajuda, diz a Escritura: 'Deus coopera para o bem de todos os que o amam' (Rm 8,28). E quanto a não devermos descuidar-nos, é bom meditar o que diz o Apóstolo: 'Morro cada dia' (1 Cor15,31). Realmente se também nós vivêssemos como se cada novo dia fôssemos morrer, não pecaríamos. Quanto à citação, seu sentido é este: ao despertarmos cada dia, deveríamos pensar que não vamos viver até à tarde; e de novo, quando vamos dormir, deveríamos pensar que não chegaremos a despertar. Nossa vida é insegura por natureza, e diariamente nos é medida pela Providência. Se com esta disposição vivemos nossa vida diária, não cometeremos pecado, nada cobiçaremos, não nos mancharemos com ninguém, não acumularemos tesouros na terra; mas como quem cada dia espera morrer, seremos pobres e perdoaremos tudo a todos. Desejar mulheres ou outros prazeres desonestos, tampouco teremos semelhantes desejos mas lhes voltaremos as costas como coisas transitórias, combatendo sempre e tendo ante os olhos o dia do juízo. O maior temor ao juízo e o desassossego pelos tormentos dissipam invariavelmente a fascinação do prazer e fortalecem o ânimo vacilante.