Parte 2
5. O deserto
O deserto constitui, na revelação do Antigo e do Novo Testamento, um tema de atração particular. Sabemos que Israel teve no deserto as experiências mais imediatas da presença, do amor, da misericórdia de Deus, e que nele teve que lutar pela pureza de sua entrega, pela fidelidade a seu Deus. Para uma tradição, o deserto passou a ser inclusive um símbolo da relação mais pura, da frescura do primeiro amor entre Deus e Israel. Na medida, porém, em que Israel se fez sedentário, foi variando sua compreensão do deserto, e não viu nele senão algo terrível, cheio de ameaças e feras, onde ninguém podia viver. Deste modo, a meditação de sua própria história fê-lo perder a visão idílica de sua peregrinação pelo deserto, e apercebeu-se de que essa época esteve cheia de pecado, de ofensa a Deus, a tal ponto que em certo momento o deserto chegou a ser símbolo do juízo condenatório de Deus. Já se vislumbra nisto a oscilação na consideração do deserto como habitação privilegiada de Deus e como lugar de sua ausência, horrível, cheio de perigos e tentações. O Novo Testamento é igualmente devedor dessa dupla visão. É no deserto que São João Batista começa o anúncio do Reino de Deus, e para onde foge a Igreja perseguida do Apocalipse (12,5-6). É também a montanha solitária lugar preferido por Jesus para sua oração íntima. Mas o deserto é, além disso, morada do demônio, símbolo do obscuro e sem vida. Jesus é tentado no deserto e, segundo seu próprio ensinamento, esse é o lugar próprio dos demônios. Seja qual for a origem dessa dupla imagem do deserto, o essencial é que participa do paradoxo de tudo o que conforma a relação de Deus com o homem. Não há lugar, nem tempo, nem coisa, nem pessoa que goze da unidade que só é própria de Deus. Tudo está marcado com o signo da ambiguidade. Tudo pode ser sinal da presença de Deus, tudo pode ser também tentação para esquecê-lo. O deserto aparece então não sob a simplista concepção de uma fuga ou evasão do mundo, senão como aquela realidade de nosso mundo na qual, mais do que em nenhuma outra, se está com indefesa desnudez ante a única decisão que importa: por Deus ou contra ele. O deserto recorda ao homem sua pobreza e solidão essenciais, sem as quais não se pode compreender nem a riqueza da criação nem a graça que significa a comunidade e o serviço aos homens. É essa dupla visão caracterizada também pela "Vida". Santo Antão vai ao deserto, vai progressivamente em busca de maior solidão para poder se enfrentar com todas as incitações que pretendem envolvê-lo em sua complexidade, estorvando-lhe o caminho à recuperação de sua unidade. É o lugar de sua luta contra o demôniio. À medida, porém, que seu progresso espiritual avança, o deserto se converte para ele em lugar privilegiado de seu encontro pessoal e místico com Deus. Esta é a finalidade verdadeira e última de toda austeridade, de toda vida ascética. Seria insensato crer que Santo Antão ou os monges esgotam sua vida na busca do demônio. Buscam primeiramente a Deus, mas sabem muito bem que esse caminho passa através de todas as ilusões demoníacas. As privações de todo tipo, a leitura e meditação da Palavra de Deus, a oração constante, são as armas para percorrer o caminho sem temer os perigos. Sua meta última é, porém, restaurar a imagem do homem tal como foi criado por Deus: dono, e não escravo do mundo, ao serviço do único Senhor do universo, e assinalar o estado último e definitivo, em que tudo é um, em que tudo é Sim e Amém.
6. Texto da "Vida"
A "Vida de Santo Antão" foi escrita por Santo Atanásio em grego. Do texto grego se conhecem 165 manuscritos. Mais da metade deles se conservam na forma que receberam na compilação de Simeão Metafrasto, o hagiógrafo grego, em fins do século X. Este texto só teve até agora duas edições originais. A primeira foi feita por David Hoeschel em 1611; por este texto todo o século XVII conheceu a "Vida". Em 1698, os beneditinos da Congregação de São Mauro J. Loppin e B. de Montfaucon publicam a primeira edição crítica das obras de Santo Atanásio, a qual figura na Patrologia grega de Migne, t.26, col. 837-976. De fato, ambas as edições, salvo algumas variantes, continuam utilizando o texto metafrástico. Seria necessária uma edição crítica do texto grego. Do texto original há duas versões latinas e várias orientais. A versão latina mais conhecida é a devida ao presbítero Evágrio de Antioquia, que no ano 388 chegou a ser bispo de sua cidade; Evágrio era amigo de São Jerônimo, e dedicou sua tradução a Inocêncio, amigo comum de ambos, morto em 374. Esta versão é, pois, do tempo de Santo Atanásio, e deve ter sido feita pouco depois da publicação do original, o que demonstra sua ampla difusão e popularidade. Dom André Wilmart deu a conhecer em 1914 a existência de outra versão latina distinta, conservada num códice do Capítulo da Basílica de São Pedro, e publicou algumas partes. Gérard Garitte editou-a integralmente em 1939. Supõe-se hoje em dia, geralmente, que esta versão é também anterior à de Evágrio, mas a deste é que foi constantemente copiada e impressa. Aparece efetivamente na edição beneditina mencionada anteriormente, ao pé do texto grego, e é também a publicada por Migne, tanto na Patrologia grega como no vol. 73, col. 125-168, da Patrologia latina. Também existem versões coptas, árabes, etíopes, sírias, armênias e georgianas, algumas já editatas, outras entretanto inéditas.
7. Nossa versão
Como já se explicou ao leitor no prólogo, o manuscrito original da tradução castelhana foi preparado sobre o texto latino de Evágrio de Antioquia. Dada a penúria de material patrístico em nossa região, só nos foi possível utilizar o volume da Patrologia grega por muito pouco tempo. De todo modo, revimos todo o manuscrito segundo esse texto. As variantes de Evágrio, que nos pareceram mais importantes, consignamo-las nas notas com a sigla: E. Foram-nos muito úteis as versões de René Draguet, Robert T. Meyer e Jean Bremond, assinaladas mais adiante na bibliografia. Desde já agradecemos todas as observações dos eruditos amigos sobre erros de tradução ou sugestões para sua melhor formulação. É este também o lugar para agradecer de todo o coração ao Pe. Elmar Boos, o.f.m. Cap. do Convento de São Francisco de Valdivia, por sua generosidade em obter para nossa biblioteca o "Patristic Greek Lexikon", de G.W.H. Lampe.
8. Lacunas
Estamos muito conscientes de nossas insuficiências e lacunas. Em particular teríamos gostado de incluir a tradução das cartas e apoftegmas atribuídos a Santo Antão. Igualmente quiséramos ter podido incluir nesta "Introdução" uma resenha das traduções castelhanas da "Vida" e, sobretudo, uma exposição dos motivos mais salientes de sua doutrina espiritual. Mas, não só esta "Introdução" se teria estendido muito além do que já o foi, como também declaramos nossa incompetência neste ponto, maior ainda do que nos outros em que nos atrevemos a tocar.
9. Bibliografia
Damos a lista das obras que mais nos serviram tanto para a redação desta Introdução, como para a preparação da tradução e das notas.
MIGNE, Patrologia grega, t. 26 (PG).
MIGNE, Patrologia latina, t. 73 (PL).
COLOMBAS, GARCIA M., El monacato primitivo, T. I BAC 351, Madrid, 1974, 376 p.
BREMOND, JEAN, Los Padres del Yermo. Prólogo de Henri Bremond. Aguilar, Madrid, s.a., 510 p.
DRAGUET, RENE, Les Pères du Désert. Plon, Paris, 1949, 1 X - 333.
LAMPE, G.W.H., Patristic Greek Lexikon. Clarendon. Oxford, XLVII - 1568 p.
LORIE, L.T.H.A., Spiritual Terminology in the Latin Translation of the Vita Antonii (Latinitas Christianorum Primaeva XI). Dekker & van de Vegt, Nimega, 1955, XV - 180 p.
MEYER, ROBERT T., The Life of Saint Anthony (Ancient Christian Writers, n. 10). The Newman Press, Westminster, Maryl., 1950, 130 p.
Studia Anselmiana 38: Antonius Magnus Eremita. Cura BASILII STEIDLE OSB Herder, Roma, 1956, VIII - 306 -.