Parte 7

 

 

OBJETO DA VIRTUDE

20. Agora que temos um começo e estamos na senda da virtude, alarguemos ainda mais nosso passo para alcançar o que temos adiante (cf Fl 3,13). Não olhemos para trás, como o fez a mulher de Lot (Gn 19,26), sobretudo porque o Senhor disse: "Quem põe a mão no arado e olha para trás não é apto para o reino dos céus" (Lc 9,62). E este olhar para trás não é outra coisa senão arrepender-se do começado e lembrar-se de novo do que deixara no mundo.

Quando ouvirem falar da virtude, não se assustem nem a tratem como palavra estranha. Realmente não está longe de nós nem seu lugar está fora de nós; está dentro de nós, e sua realização é fácil contanto que tenhamos vontade (cf Dt 30, 11ss). Os gregos viajam e cruzam o mar para estudar as letras; nós, porém, não temos necessidade de por-nos a caminho pelo reino dos céus nem de cruzar o mar para alcançar a virtude. O Senhor no-lo disse de antemão: 'O Reino dos céus está dentro de vós' (Lc 17,21). Por isso a virtude só necessita de nossa vontade, já que está dentro de nós e brota de nós. A virtude existe quando a alma se mantém em seu estado natural. É mantida nesse estado natural quando permanece como veio a ser. E veio a ser limpa e perfeitamente íntegra (cf Ecl 7,30). Por isso Josué, o filho de Nun, exortou ao povo com estas palavras: 'Mantenham íntegros seus corações diante do Senhor, o Deus de Israel (Jos 24, 23); e João: 'Endireitem seus caminhos' (Mt 3,3). A alma é reta quando a mente se mantém no estado em que foi criada. Mas quando se desvia e se perverte de sua condição natural, isso se chama vício da alma.

A tarefa não é difícil: se ficamos como fomos criados, estamos no estado de virtude; mas se entregamos nossa mente a coisas baixas, somos considerados perversos. Se esse trabalho tivesse de ser realizado de fora, seria em verdade difícil; mas estando dentro de nós, acautelemo-nos contra os pensamentos maus. E tendo recebido a alma como sendo confiada a nós, guardemo-la para o Senhor, a fim de que Ele possa reconhecer sua obra, tal qual a fez (31).

21. Lutemos, pois, para que a ira não nos domine nem a concupiscência nos escravize; pois está escrito que 'a ira do homem não faz o que agrada a Deus' (Tg 1,20). E a concupiscência 'depois de conceber, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte' (Tg 1,15). Vivendo esta vida, mantenhamo-nos cuidadosamente atentos e, como está escrito, 'guardemos nosso coração com a máxima vigilância' (Pr 4,23). Temos inimigos poderosos e fortes: são os malvados demônios; e contra eles é nossa luta', como diz o Apóstolo, 'não contra gente de carne e osso, mas contra forças espirituais de maldade espalhados nos ares, isto é, os que têm autoridade e domínio sobre este mundo tenebroso (Ef 6,12). Grande é seu número no ar e em redor de nós (32), e não estão longe de nós. Mas a diferença entre eles é considerável. Levaria muito tempo para dar uma explicação de sua natureza e distinções, e tal investigação é para outros mais competentes do que eu; o único urgente e necessário para nós agora é só conhecer suas vilanias contra nós.

ARTIFÍCIOS DOS DEMÔNIOS

22. Em primeiro lugar, demo-nos conta disto: os demônios não foram criados como demônios, tal como entendemos este termo, porque Deus não fez o mal. Também eles foram criados puros, mas desviaram-se da sabedoria celestial. Desde então andam vagando sobre a terra. Por um lado, enganaram aos gregos com vãs fantasias (33), e, invejosos de nós, cristãos, nada omitiram para nos impedir de entrar no céu; não querem que subamos ao lugar de onde cairam. Por isso é necessário muita oração e disciplina ascética para que alguém possa receber do Espírito Santo o dom do discernimento dos espíritos e ser capaz de conhecê-los; qual deles é menos mau, qual o pior; que interesse especial tem cada um e como hão de ser repelidos e lançados fora; pois são numerosas suas astúcias e maquinações. Bem sabiam isto o santo Apóstolo e seus discípulos quando diziam: 'Conhecemos muito bem suas manhas' (2 Cor 2,11). E nós, ensinados por nossas experiências, deveríamos guiar outros a apartarem-se deles. Por isso eu, tendo feito em parte essa experiência, falo a vocês como a filhos meus.

23. Quando eles vêem que os cristãos em geral, mas em particular os monges, trabalham com cuidado e fazem progressos, primeiro os assaltam e tentam colocando-lhes continuamente obstáculos em seus caminhos (Sl 139,6). Estes obstáculos são os maus pensamentos. Mas não devemos assustar-nos com suas armadilhas que são logo desbaratadas com a oração, o jejum e a confiança no Senhor. No entanto, ainda que desbaratados, não cessam, mas antes voltam ao ataque com toda maldade e astúcia. Quando não podem enganar o coração com prazeres abertamente impuros, mudam de tática e vão ao ataque. Então urdem e fingem aparições para aturdir o coração, transformando-se e imitando mulheres, bestas, répteis, corpos de grande estatura e hordas de guerreiros. Nas nem assim devem esmagar-nos o modo de semelhantes fantasmas, já que não passam de pura vaidade - especialmente se se fortalece com o sinal da cruz.

Em verdade, são atrevidos e extraordinariamente desavergonhados. Se neste ponto também os derrotamos, avançam uma vez mais com nova estratégia. Pretendem profetizar e predizer acontecimentos futuros. Aparecem mais altos que o teto, gordos e corpulentos. Seu propósito é, se possível, arrebatar com mais aparições, os que não puderam enganar com pensamentos. E se acham que ainda assim a alma permanece forte em sua fé e sustentada pela esperança, fazem seu chefe intervir.

24. Este aparece frequentemente desta maneira como, por exemplo, o Senhor revelou a Jó: 'Seus olhos são como pálpebras da aurora. De sua boca saem tochas acesas, chispas de fogo saltam fora. De suas narinas sai fumaça como de panela ou caldeirão a ferver. Seu sopro acende carvões e de sua boca saem chamas' (Jó 41,18-21). Quando o chefe dos demônios aparece desta maneira, o velhaco trata de atemorizar-nos, como disse antes, com seu falar valentão, tal como foi desmascarado pelo Senhor quando disse a Jó: 'Tem toda arma por folha seca e zomba de brandir da azagaia; faz ferver como uma panela o mar profundo e o revolve como uma panela de unguento (Jó 41,29,31); também diz o profeta: 'Disse o inimigo: Persegui-los-ei e os alcançarei (Ex 15,9); e em outra parte: 'Minha mão achou como ninho as riquezas dos povos, e como se recolhem ovos abandonados, assim me apoderei de toda a terra' (Is 10,14):

Esta é, em resumo, a jactância do que alardeiam, estas são as arengas que fazem para enganar o que teme a Deus. Com toda confiança não precisamos temer suas aparições nem dar atenção a suas palavras. É apenas um embusteiro e não há verdade em nada do que diz. Quando fala semelhantes estultícias, e o faz com tanta jactância, não se apercebe de de como é arrastado com um garfo de ferro, como dragão, pelo Salvador (cf Jó, 41, l-2), com um cabresto como animal de carga, com anel no nariz como escravo fugitivo, e com seus lábios atravessados por uma argola de ferro. Foi, pois, apanhado como animal pra nossa diversão. Tanto ele como seus companheiros foram tratados assim para serem pisados como escorpiões e cobras (cf Lc 10,19) por nós, cristãos; e prova disso é o fato de que continuamos a existir, apesar dele. Em verdade, notem que ele, que proclamou secar o mar e apoderar-se do mundo todo, não pode impedir nossas práticas ascéticas nem que eu fale contra ele. Por isso, não demos atenção ao que possa dizer, porque é um mentiroso astuto, nem temamos suas aparições, por que são mentiras também. Certamente não é verdadeira luz a que aparece neles, mas antes é mero começo e semelhante ao fogo preparado para eles próprios; e com o mesmo que os queimará tratam de aterrorizar os homens. Aparecem, é verdade, mas desaparecem de novo no mesmo momento, sem danificar nenhum crente, enquanto levam consigo essa aparência de fogo que os espera. Por isso, não há razão alguma para ter medo deles, pois, pela graça de Cristo todas as suas táticas dão em nada.

25. São, porém, traiçoeiros e estão preparados para suportar qualquer mudança ou transformação. Muitas vezes, por exemplo, pretendem até cantar salmos, sem aparecer, e citam textos das Escrituras. Também algumas vezes, quando estamos lendo, repetem de repente, como eco, o que lemos. Quando vamos dormir, despertam-nos para orar, e fazem isto continuamente, mal nos deixando dormir. Outras vezes se disfarçam em monges e simulam piedosas conversas, tendo como meta enganar com sua aparência e arrastar então suas vítimas para onde querem. Mas não lhes devemos prestar atenção, ainda que nos despertem para orar, ou nos aconselhem a não comer de todo, ou pretendem nos acusar de coisas que antes aprovavam. Fazem isto não por amor à piedade ou à verdade, mas para levar o inocente ao desespero, para apresentar a vida ascética como sem valor e fazer com que os homens se enfastiem da vida solitária como algo muito rude e demasiadamente pesado, e assim fracassem os que levam tal vida.

26. Por isso o profeta enviado pelo Senhor chamou a tais infelizes com estes termos: 'Ai daquele que dá a beber a seu próximo um mau trago!' (Hab 2,15). Tais táticas e argumentos são desastrosos para o caminho que conduz à virtude. Nosso Senhor mesmo, ainda que os demônios falassem também a verdade - pois diziam verdadeiramente: 'Tu és o Filho de Deus' (Lc 4,41) -, não obstante os fez calar e proibiu-lhes falar. Não quis que esparramassem sua própria maldade junto com a verdade, e tampouco desejava que fizéssemos caso deles ainda quando aparentemente falassem verdade. Por isso é inconveniente que nós, possuindo as Escrituras e a liberdade do Salvador, sejamos ensinados pelo demônio que não ficou em seu posto (cf Judas 6), mas constantemente mudou de parecer. Por isso também proibe-lhe citar as Escrituras, ao dizer: 'Deus disse ao pecador: Por que recitas meus preceitos e tens sempre em tua boca minha aliança?' (Sl 49,16). Certamente eles fazem de tudo: falam, gritam, enganam, confundem, e tudo para enganar o simples. Armam também tremendos estrépitos, soltam risadas tontas e sibilos. Se ninguém faz caso deles, choram e lamentam-se como derrotados.

27. O Senhor, por isso, porque é Deus, fez os demônios calarem-se. Quanto a nós, aprendemos nossas lições dos santos, fazemos como eles fizeram e imitamos-lhe o valor. Pois quando eles viam tais coisas, costumavam dizer: 'Quando o pecador se levantou contra mim, guardei silêncio resignado, não falei com leviandade (Sl 38,2); e em outra parte: 'Mas eu como um surdo não ouço, como um mudo não abro a boca; sou como alguém que não ouve' (Sl 37,14). Assim também nós não os escutemos, olhando-os como a estranhos, não lhes prestando atenção, ainda que nos despertem para a oração ou nos falem de jejuns. Antes, sigamos atentos a prática da vida ascética como é nosso propósito, e não nos deixemos enganar pelos que praticam a traição em tudo o que fazem. Não lhes devemos ter medo ainda que apareçam para atacar-nos e ameaçar-nos de morte. Na realidade são frágeis e nada podem fazer mais do que ameaçar.

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