Parte 4

PRIMEIROS COMBATES COM OS DEMÔNIOS

5. Mas o demônio, que odeia e inveja o bem, não podia ver tal resolução num jovem, e se pôs a empregar suas velhas táticas também contra ele (19). Primeiro tratou de fazê-lo desertar da vida ascética recordando-lhe sua propriedade, o cuidado de sua irmã, os apegos da parentela, o amor do dinheiro, o amor à glória, os inumeráveis prazeres da mesa e todas as demais coisas agradáveis da vida. Finalmente apresentou-lhe a austeridade e tudo o que se segue a essa virtude, sugerindo-lhe que o corpo é fraco e o tempo é longo. Em resumo, despertou em sua mente toda uma nuvem de argumentos, procurando fazê-lo abandonar seu firme propósito.

O inimigo viu, no entanto, que era impotente em face da determinação de Antão, e que antes era ele que estava sendo vencido pela firmeza do homem, derrotado por sua sólida fé e sua constante oração. Pôs então toda a sua confiança nas armas que estão "nos músculos de seu ventre" (Jó 40,16). Jactando-se delas, pois são sua preferida artimanha contra os jovens, atacou o jovem molestando-o de noite e instigando-o de dia, de tal modo que até os que viam Antão podiam aperceber-se da luta que se travava entre os dois. O inimigo queria sugerir-lhe pensamentos baixos, mas ele os dissipava com orações; procurava incitá-lo ao prazer, mas Antão, envergonhado, cingia seu corpo com sua fé, orações e jejuns. Atreveu-se então o perverso demônio a disfarçar-se em mulher e fazer-se passar por ela em todas as formas possíveis durante a noite, só para enganar a Antão. Mas ele encheu seus pensmentos de Cristo, refletiu sobre a nobreza da alma criada por Ele, e sua espiritualidade, e assim apagou o carvão ardente da tentação. E quando de novo o inimigo lhe sugeriu o encanto sedutor do prazer, Antão, enfadado com razão, e entristecido, manteve seus propósitos com a ameaça do fogo e dos vermes (cf Jd 16,21; Sir 7,19; Is 66,24; Mc 9,48) (20). Sustentando isto no alto, como escudo, passou por tudo sem se dobrar.

Toda essa experiência levou o inimigo a envergonhar-se. Em verdade, ele, que pensara ser como Deus, fez-se louco ante a resistência de um homem. Ele, que em sua presunção desdenhava carne e sangue, foi agora derrotado por um homem de carne em sua carne. Verdadeiramente o Senhor trabalhava com este homem, Ele que por nós tornou-se carne e deu a seu corpo a vitória sobre o demônio. assim, todos os que combatem seriamente podem dizer: "Não eu, mas a graça de Deus comigo" (1 Cor 15,10).

6. Finalmente, quando o dragão não pôde conquistar Antão nem por estes últimos meios, mas viu-se arrojado de seu coração, rangendo seus dentes, como diz a Escritura (Mc 9,17), mudou, por assim dizer, sua pessoa. Tal como é seu coração, assim lhe apareceu: como um moço preto (21); e como inclinando-se diante dele, já não o molestou com pensamentos - pois o impostor tinha sido lançado fora - mas usando voz humana disse-lhe: "A muitos enganei e venci; mas agora que te ataquei a ti e a teus esforços como o fiz com tantos outros, mostrei-me demasiadamente fraco".

"Quem és tu que me falas assim?", perguntou-lhe Antão. Apressou-sse o outro a replicar com a voz lastimosa: "Sou o amante da fornicação. Minha misão é espreitar a juventude e seduzi-la; chamam-me o espírito de fornicação. A quantos eu enganei, decididos que estavam a cuidar de seus sentidos! A quantas pessoas castas seduzi com minhas lisonjas! Eu sou aquele por cuja causa o profeta censura os decaídos: "Foram enganados pelos espírito da fornicação" (Os 4,12). Sim, fui eu que os levei à queda. Fui eu que tanto te molestei e tão a miúdo fui vencido por ti". Antão deu, pois, graças ao Senhor e armando-se de coragem contra ele, disse: "És então inteiramente desprezível; és negro em tua alma e tão débil como um menino. Doravante já não me causas nenhuma preocupação, porque o Senhor está comigo e me auxilia: verei a derrota de meus adversários" (Sl 117, 7).

Ouvindo isto, o negro desapareceu imediatamente, inclinando-se a tais palavras e temendo acercar-se do homem.

ANTÃO AUMENTA SUA AUSTERIDADE

7. Esta foi a primeira vitória de Antão sobre o demônio; ou melhor, digamos que este singular êxito em Antão foi do Salvador, que "condenou o pecado na carne, a fim de que a justificação prescrita pela Lei, fosse realizada em nós, que vivemos não segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rm 8,3-4). Mas Antão não se descuidou nem se acreditou garantido por si mesmo pelos simples fato de se ter o demônio lançado a seus pés; tampouco o inimigo, ainda que vencido no combate, deixou de estar-lhe à espreita. andava dando voltas em redor, como um leão (1 Pd 5,8), buscando uma ocasião contra ele. Antão, porém, tendo aprendido nas Escrituras quão diversos são os enganos do maligno (Ef 6,11), praticou seriamente a vida ascética, tendo em conta que, se não pudesse seduzir seu coração pelo prazer do corpo, trataria certamente de enganá-lo por algum outro método; porque o amor do demônio é o pecado. Resolveu, por isso, acostumar-se a um modo mais austero de vida. Mortificou seu corpo sempre mais, e o sujeitou, para não acontecer que, tendo vencido numa ocasião, perdesse em outra (1 Cor9,27). Muitos se maravilhavam de suas austeridades, porém ele próprio as suportava com facilidade. O zelo que havia penetrado sua alma por tanto tempo transformou-se pelo costume em segunda natureza, de modo que ainda a menor inspiração recebida de outros levava-o a responder com grande entusiasmo. Por exemplo, observava as vigílias noturnas com tal determinação, que a míudo passava toda a noite sem dormir, e isso não só uma vez mas muitas, para admiração de todos. Assim também comia só uma vez ao dia, depois do cair do sol; às vezes cada dois dias, e com frequência tomava seu alimento só depois de quatro dias. Sua alimentação consistia em pão e sal; como bebida tomava só água. Não necessitamos sequer mencionar carne ou vinho, porque tais coisas tampouco se encontravam entre os demais ascetas. Contentava-se em dormir sobre uma esteira, embora regularmente o fizesse sobre o simples chão. Despreza o uso de unguentos para a pele, dizendo que os jovens devem praticar a vida ascética com seriedade e não andar buscando coisas que amolecem o corpo; deviam antes acostumar-se ao trabalho duro, tendo em conta as palavras do Apóstolo: "É na fraqueza que se revela minha força" (2 Cor 12,10). Dizia que as energias da alma aumentam quanto mais débeis são os desejos do corpo.

Além disto estava absolutamente convencido do seguinte: pensava que apreciaria seu progresso na virtude e seu consequente afastamento do mundo não pelo tempo passado nisto mas por seu apego e dedicação. Assim, não se preocupava com o passar do tempo, mas dia por dia, como se estivesse começando a vida ascética, fazia os maiores esforços rumo à perfeição. Gostava de repetir a si mesmo as palavras de S. Paulo: "Esquecer-me do que fica para trás e esforçar-me por alcançar o que está adiante" (Fl 3,13), recordando também a voz do profeta Elias: "Viva o Senhor em cuja presença estou neste dia" (1 Rs 17,1; 18,15). Observava que, ao dizer "este dia", não estava contando o tempo que havia passado, mas, como que começando de novo, trabalhava duro cada dia para fazer de si mesmo alguém que pudesse aparecer diante de Deus: puro de coração e disposto a seguir Sua vontade. E costumava dizer que a vida levada pelo grande Elias devia ser para o asceta como um espelho no qual poderia sempre mirar a própria vida.

ANTÃO RECLUSO NOS SEPULCROS - MAIS LUTAS COM OS DEMÔNIOS

8. Assim dominou-se Antão a si mesmo. Decidiu então mudar-se para os sepulcros (22) que se achavam a certa distância da aldeia. Pediu a um de seus familiares que lhe levasse pão a longos intervalos. Entrou, pois, em uma das tumbas; o mencionado homem fechou a porta atrás dele, e assim ficou dentro sozinho. Isto era mais do que o inimigo podia suportar, pois em verdade temia que agora fosse encher também o deserto com a vida ascética. Assim chegou uma noite com um grande número de demônios e o açoitou tão implacavelmente que ficou lançado no chão, sem fala pela dor. Afirmava que a dor era tão forte que os golpes não podiam ter sido infligidos por homem algum para causar semelhante tormento. Pela Providência de Deus - porque o Senhor não abandona os que nele esperam - seu parente chegou no dia seguinte trazendo-lhe pão. Quando abriu a porta e o viu atirado no chão como morto, levantou-o e o levou até a igreja da aldeia e o depositou sobre o solo. Muitos de seus parentes e da gente da aldeia sentaram-se em volta de Antão como para velar um cadáver. Mas pela meia-noite Antão recobrou o conhecimento e despertou. Quando viu que todos estavam dormindo e só seu amigo se achava desperto, fez-lhe sinais para que se aproximasse e pediu-lhe que o levantasse e levasse de novo para os sepulcros, sem despertar ninguém.

9. O homem levou-o de volta, a porta foi trancada como antes e de novo ficou dentro, sozinho. Pelos golpes recebidos estava demasiado fraco para manter-se de pé; orava então, estendido no solo. Terminada sua oração, gritou: "Aqui estou eu, Antão, que não me acovardei com teus golpes, e ainda que mais me dês, nada me separará do amor de Cristo (Rm 8,35). E começou a cantar: "Se um exército se acampar contra mim, meu coração não temerá" (Sl 26,3).

Tais eram os pensamentos e palavras do asceta, mas o que odeia o bem, o inimigo assombrado de que depois de todos os golpes ainda tivesse valor para voltar, chamou seus cães (23) e arrebatado de raiva disse: "Vêem vocês que não pudemos deter esse tipo nem com o espírito de fornicação nem com os golpes; ao contrário, chega até a desafiar-nos. Vamos proceder contra ele de outro modo".

A função de malfeitor não é difícil para o demônio. Essa noite, porisso, fizeram tal estrépito que o lugar parecia sacudido por um terremoto. Era como se os demônios abrissem passagens pelas quatro paredes do recinto, invadindo impetuosamente através delas em forma de bestas ferozes e répteis. De repente todo o lugar se encheu de imagens fantasmagóricas de leões, ursos, leopardos, touros, serpentes, víboras, escorpiões e lobos; cada qual se movia segundo o exemplar que havia assumido. O leão rugia, pronto a saltar sobre ele; o touro, quase a atravessá-lo com os chifres; a serpente retorcia-se sem o alcançar completamente; o lobo acometia-o de frente (24). E a gritaria armada simultaneamente por todas essas aparições era espantosa, e a fúria que mostravam, feroz.

Antão, atormentado e pungido por eles, sentia aumentar a dor em seu corpo; no entanto, permanecia sem medo e com o espírito vigilante. Gemia, é verdade, pela dor que atormentava seu corpo, mas a mente era senhora da situação e, como por debique, dizia-lhes: "Se tivessem poder sobre mim, teria bastado que viesse um só de vocês; mas o Senhor lhes tirou a força e por isso se esforçam em fazer-me perder o juízo com seu número; é sinal de fraqueza terem de imitar animais ferozes". De novo teve a valentia de dizer-lhes: "Se é que podem, se é que receberam poder sobre mim, não se demorem, venham ao ataque! E se nada podem, para que esforçar-se tanto sem nenhum fim? Porque a fé em Nosso Senhor é selo para nós e muro de salvação". Assim, depois de haver intentado muitas argúcias, rangeram os dentes contra ele, porque eram eles próprios que estavam ficando loucos e não ele.

10. De novo o Senhor não se esqueceu de Antão em sua luta, mas veio ajudá-lo. Pois quando olhou para cima, viu como se o teto se abrisse e um raio de luz baixasse até ele. Foram-se os demônios de repente, cessou-lhe a dor do corpo, e o edifício estava restaurado como antes. Notando que a ajuda chegara, Antão respirou livremente e sentiu-se aliviado de suas dores. E perguntou à visão: "onde estavas tu? Por que não aparecestes no começo para deter minhas dores?" E uma voz lhe falou: "Antão, eu estava aqui, mas esperava ver-te enquanto agias. E agora, porque aguentaste sem te renderes, serei sempre teu auxílio e te tornarei famoso em toda parte".

Ouvindo isto, levantou-se e orou: e ficou tão fortalecido que sentiu seu corpo mais vigoroso que antes. Tinha por aquele tempo uns trinta e cinco anos de idade.

 

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